“Poetas, deuses, dúvidas…”
http://www.youtube.com/watch?v=WDh-BNQftM8
“Poetas, deuses, dúvidas…”
http://www.youtube.com/watch?v=WDh-BNQftM8
Annibal Augusto Gama
Assim como há homens gordos ou mulheres magras, cavalheiros de conspícuas calvas, viúvas de olheiras e verrugas na asa do nariz, há almas rotundas ou magérrimas, almas que perderam os cabelos, e outras de nariz torto.
***
Três ovos no ninho do pássaro, mas um deles ia gorar: o silêncio, o nada, mais enigmáticos que o projeto da cor, do voo, do canto.
***
O muro era tão solitário que nunca se viu sobre ele passar um gato.
***
As flores imarcescíveis da retórica: não murcham porque são de papel.
***
Romeu e Julieta: vejo-os casados, com filhos que também já se casaram e lhes deram netos. Aos domingos, a mamma faz uma bela macarronada, Romeu bebe vinho demais, embriaga-se e xinga Frei Lourenço. A tragicomédia que Shakespeare não escreveu.
***
Lentamente, a mocinha passou de modelo a dançarina, de dançarina a call girl, de call girl a prostituta, de prostituta a marafona e cafetina, Mas sempre que se registra nos hotéis se qualifica com a profissão de sua primeira carteira de identidade: modelo. Modelo de virtudes.
***
Todas as vezes que lhe batiam na porta abria apenas uma fresta e dizia que não queria absolutamente nada, e que não tinha mais nada para dar, livrando-se assim dos vendedores e dos pedintes. Morto, à porta do céu, ficou com receio de que São Pedro lhe respondesse do mesmo modo. Não bateu na porta. Sentou-se ali, e ali ficou durante séculos. E as outras almas batiam, abriam-se-lhes a porta, ou eram enxotadas. E ele ali. Até que São Pedro perdeu a paciência. “Que é que o senhor quer?” “Não quero nada”. Com um pontapé, São Pedro botou-o para dentro. Mas havia muitas outras portas fechadas, infinitas portas de infinitas moradas. Diante de cada uma delas, ele sentava-se e continuava esperando. Mais outros séculos, e era posto para dentro a pontapés. Jamais saberá quantas portas lhe restam e quantos pontapés.
***
Projeto de suicídio: Raspou todos os rótulos das garrafas de bebida e numa delas, vazia, despejou cianureto. Misturou-as. Noites e noites, bebia de uma das garrafas, e apenas se embriagava ligeiramente. Uma a uma, as garrafas foram consumidas, sem que se envenenasse. Restou a última, certamente a de cianureto. Olhou-a longamente. Chegou a hora. Mas ao invés de lhe beber um trago, comprou mais duzentas garrafas de bebida, retirou-lhes os rótulos e misturou-as com a de cianureto. Continua bebendo.
***
Para meu gosto, o poeta Laforgue (L´Imitation de Notre-Dame la Lune, Les Complaintes et les premier poémes), que conseguiu aquele belo verso, “oh, que la vie est cotidienne!”, tem “oh, ah, ô” demais em seus poemas, helas! “Ô vision du temps ou l´être trop puni…” , “Oh! monter, perdu, m´étancher à même. “Ô pilule des léthargies finales”, “Ô Diane à la chlamyde trés-doriques”, “Ah! d´um trait inoculant l´être optere,” “Des nuits, ô Lune d´Immaculée-Conception”, “Ô Radeau du Nihil aux quais seuls de nos nuits”, etc…. As exclamações estouram como bolhas de sabão.
***
No silêncio da madrugada, o médico de branco e mascarado desliza pelo corredor do hospital como um ladrão asséptico.
***
As borboletas quando pousam fecham as asas; as borboletas noturnas, mais conhecidas como bruxas, pousam de asas abertas. Como as mulheres que sentam de pernas fechadas ou abertas, umas são pudicas e outras não.
***
Os anjos não sentam, estão sempre de pé, porque suas asas são impraticáveis no encosto das poltronas e das cadeiras.
***
De longe te hei-de amar
— da tranquila distância
em que o amor é saudade
e o desejo, constância.
Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.
Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?
E, no fundo do mar,
a Estrela, sem violência,
cumpre a sua verdade,
alheia à transparência.
(Cecília Meireles, in “Canções”)
“Mil Perdões” (Chico Buarque), com Gal Costa
[youtube] http://www.youtube.com/watch?v=yp0wzjUICFU[/youtube]
ROL DOS CULPADOS
Preso nesta cadeia nua
atrás de uma janela de grades de ferro
e desta porta fechada
cumpro uma pena que não sei
de tão longa, de tão incerta.
Que réu sou eu?
Serei o que matou o rei
ou o que violou uma donzela?
Fui eu que furtei o ouro
do tesouro de um deus sem rosto?
Sou um soberano deposto
ou um bandido sem grei?
Não me dizem e não sei.
Ouço de tão longe
a voz de uma mulher
que chama alguém.
Quem ela odeia ou ama?
Serei eu?
Mas quem sou eu?
Sou o que matei,
ou o que roubei?
Ou ela chama ninguém?
Pergunto à prima em que lojas encontro a lista de presentes do casamento do filho: “Esquenta muito não, querida. Eles se separam e você ainda está pagando.” Ontem, numa joalheria, ouvi da mãe que comprava brincos para a filha noiva: “Prefiro dar joia. Se ela se separar, é dela!”. Alô.
Não existe mais crise dos 7 anos, não, gente? Os antigos costumavam discutir a relação antes de cada um levar seu retrato, seu trapo, seu prato… Havia até um ditado que pregava a indissolução casamentícia: “quem come a carne, rói o osso”. Que coisa… Hoje ficam somente nas entradas (sem trocadilho, por favor).
Bem haja o casalzinho da foto. Take a look na convicção do galã. Chego a ouvir o “sim” dele quando o padre lhe perguntou se aceitava a mocinha como sua futura viúva, ops!, esposa. Toda pinta de que irá se dedicar a turbinar seu “Benjamin Button” e dizer não à mesmice. Sólida união até que a morte os separe.
A noivinha, que se apaixonou pelo desenho da panturrilha direita dele, adorou levar o pacote completo. Sobretudo porque veio com um conversível vermelho. Sabe que irá assoprar muitas sopinhas para ele, que não poderá forçar barras e que a asma talvez o atrapalhe na hora de curtir o vento do conversível. Mas amar é.
Só não entendi o “agarre a vida pelos chifres.” Hummmm… O fofoleto não merece
Selma Barcellos
http://www.youtube.com/watch?v=d4RhNvjk4YI
Adalberto de Oliveira Souza
UMA CIDADE
Cair nesse labirinto
é sortilégio.
Atrás de alguma curva
há algo escondido.
É preciso subir,
descer.
Por fim, uma rede se mostra,
já gasta, mas firme.
Lento o tempo prendeu-se
nessas teias.
Tocamos seus vãos,
seus vários mistérios.
Turistas atraídos ou distraídos
se prendem, mas se soltam.
Dentro dessa cidade,
há um resplendor que
todos procuram.
Sombras antigas,
nas suas tantas janelas,
nas suas portas.
Uma contida indiscrição
convida-nos a decifrá-la
e rever seus segredos
irrevelados.
“Foi a Adão que Deus deu a faculdade de dar o nome a todas às coisas. A Eva, não.
Porque Eva já era todas as coisas, os pássaros, as borboletas, as flores, a água, o céu, as nuvens, a lua e as estrelas, o vento e o rumor da noite.”
(Annibal Augusto Gama)
http://www.youtube.com/watch?v=BOByH_iOn88