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Champollion e a pedra no sapato

 

        Annibal Augusto Gama

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Foi Champollion que decifrou a “Pedra da Roseta”, mas ignoro se algum dia decifrou a pedra no sapato. É uma pedrinha insignificante que entra no sapato e incomoda como o diabo. Tirar o sapato na rua e sacudir fora a pedra é deselegante. Então, você retorna para casa, entra, tira o sapato e despeja dele a pedrinha. É uma coisinha à toa, mas como atrapalhava!

A existência é feita desses pedregulhos, menores ou maiores. Machado de Assis já escreveu sobre as botas apertadas, mas não sobre a pedra no sapato. As botas apertadas foram feitas para você sacá-las, e sentir-se, depois disso, aliviado e feliz. A pedra no sapato substitui as botas apertadas, e o resultado é quase o mesmo.

Nós às vezes sofremos muito com coisas miúdas. E tal sofrimento não é menor do que o sofrimento com as coisas graúdas. Também há alegrias pequenas que se equivalem às grandes alegrias. Outro dia, indo a São Paulo, perdi os meus óculos de ver de perto, esquecendo-o no assento de um carro de aluguel. Ora, eu fora à capital paulista justamente para visitar as livrarias que aqui em Ribeirão Preto já não há. E como ver e escolher livros, sem a ajuda dos óculos? Fui à Livraria Brandão, na Rua Xavier de Toledo, um sebo magnífico com mais de quarenta mil livros. Alguém, lá dentro, ofereceu-me os seus óculos. Serviram-me um pouco, e pude vasculhar as prateleiras, botando os livros sobre uma mesa. Reuni mais de vinte livros e comprei-os. O dono da Livraria Brandão é um ótimo sujeito, e conversamos muito.

Dali fui à Livraria Cultura, mas lá ninguém me ofereceu óculos para enxergar perto. Ainda assim, arranjei-me como pude e comprei outros livros.

Agora, já em casa, e com os óculos em duplicata que tenho, leio uns e leio outros.

O negócio é este: arranjar-se com a pedrinha no sapato.

Como eu também estou com um começo de catarata, perguntou-me alguém porque não me opero. Respondi que prefiro a catarata, porque assim deixo de ver tanta mulher feia. Mas também perco as mulheres bonitas, que são muitas.

A vida é uma compensação: dá a pedra no sapato e a felicidade de poder tirá-la dele.

Eu podia escrever um livro de autoajuda. Ganharia dinheiro. Mas não creio em autoajuda. Na verdade, nós nos ajudamos quando ajudamos aos outros.

Quando saio com o meu cachorrinho Pichorro, dou sempre com um sujeito que vigia os carros dos outros. Ele, logo que me vê, pede-me um cigarro e algumas moedas. Dou, embora saiba que aquilo não adianta nada. O sujeito continuará miserável como antes.

Mas, dar é uma pedrinha que tiro do sapato. Sou eu que lucro.

Quando é que somos verdadeiramente felizes? 

Quando não pensamos nisso.

 

botas apertadas 1 

 

 

Teodureto

 

        Annibal Augusto Gama

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Teodureto quebrou um dedo, quando lhe desabou sobre a mão a janela de guilhotina. Saiu urrando de dor, e dançando pela casa. Foi ao médico, que lhe engessou o dedo e ficou dedo duro. Mas não era.

Quando conheceu Sofia, ela lhe perguntou, rindo:

— Teodureto não é nome de remédio?

Os remédios curam ou não curam. Alopatia, homeopatia, benzeções e garrafadas. Tosse? Tome Bromil.

O que não tem remédio, remediado está.

O remédio é amar, mas amar também dói.

Teodureto amou Sofia, mas fie-se em quem só fia.

Droga para perda de memória é fosfato. 

Vestido de fraque, Teodureto foi falar com o pai de Sofia 

— Peço-lhe autorização para namorar Sofia, noivar e casar.

O homem tinha muitos cuidados com a filha e lhe perguntou severamente:

— O senhor o que faz?

— Por enquanto, nada.

— Pois nade em mar crespo, e volte salgado.

Vendo o triste pastor que assim lhe era negada a sua pastora, começou de servir outros sete anos, dizendo, “mais servira se não fora para tão longo o amor tão curta a vida” 

Com o dinheiro que possuía, abriu uma farmácia, botando espetado na porta o marinheiro carregando um grande peixe, da Emulsão de Scott.

Remédio vai, remédio vem, ia fazer injeções nas bundas fofas das madamas, espetando-lhes a agulha e depois soprando.

Enquanto isso, Sofia ria.

Quinze anos depois, Teodureto estava gordo e calvo e, ao luar da noite, roía o queijo da Lua.

Não casou, e envelheceu.

E, ao invés de descobrir um remédio para lembrar, inventou outro, para esquecer.

No esquecimento, todas as Sofias andam de braços dados com as Briolanjas.

As mulheres são como maçãs nas gavetas: secam e murcham.

Lembrai-vos disso, meninas: o amor é para dar-se.

 

Emulsão de Scott

 

 

Telefone para Cacilda

 

          Annibal Augusto Gama

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Encontrei-o por acaso na fila de ônibus. Abraçamo-nos e trocamos algumas palavras insignificantes. Às vezes, passava anos sem vê-lo. Ele fora meu colega de ginásio. Já com o pé no primeiro degrau na porta do ônibus, ele voltou a cabeça e me disse: “Telefone para Cacilda. Não deixe de telefonar para Cacilda”. A porta do veículo fechou-se, e o ônibus partiu.

Permaneci na calçada alguns minutos, e, de repente, tornou a acudir-me a sua recomendação: “Telefone para Cacilda. Não deixe de telefonar para Cacilda”.

Ora, eu não conhecia nenhuma Cacilda, e não tinha o número do telefone de nenhuma Cacilda. A Cacilda que eu conhecia, a única, fora Cacilda Becker, a atriz, a maravilhosa Cacilda Becker, que já estava morta havia muitos anos.

Mas a sua recomendação não saiu mais da minha cabeça. Quantas Cacildas haveria na cidade, no país? Milhares. O seu prenome não viria na Lista Telefônica, sabido que a Lista traz o sobrenome, e depois o prenome.

Ainda assim, impus-me uma obrigação: todos os dias discava trinta números de telefone. E quando me atendiam, perguntava: “A Cacilda está? Quero falar com ela”. Foram dez mil, novecentos e cinquenta telefonemos, num ano. Se me atendiam, a resposta era que não havia nenhuma Cacilda na casa. Outros se irritavam, e me xingavam.

Mas a minha obsessão persistia. Tinha de telefonar para Cacilda, falar com Cacilda.

Os amigos começaram a achar que eu estava maluco. “Procure um psiquiatra”, aconselhavam-me.

Afinal, fui a um psiquiatra. Esperei na sua sala, até que uma porta foi aberta e mandaram-me entrar.

Entrei, e fui logo dizendo à mulher que me atendeu tudo o que acontecia comigo. Ela anotou o que eu dizia, ou gravou. E disse-me: “Eu sou a Dra. Cacilda. O seu estado é grave, o senhor precisa de tratamento. Venha, uma vez por semana, a esta mesma hora, cobro R$250,00 por sessão”.

A Dra. Cacilda, porém, não era a Cacilda que eu procurava. Ainda assim, continuei a comparecer, uma vez por semana, às sessões, durante as quais falava de tudo. Da minha infância, dos meus pais, de um ursinho de pelúcia que tivera, e cujo nome era Afonso. A psiquiatra ouvia-me, gravava as minhas palavras, e não dizia nada. Meus sonhos também a interessavam.

Continuei  telefonando para Cacilda, sem resultado.

Outro amigo me disse: “Nós sempre procuramos Cacilda”.

“E a encontramos, afinal?”— perguntei-lhe.

E ele respondeu-me, sacudindo a cabeça:

“Jamais!”

 

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O binômio de Newton

 

          Annibal Augusto Gama

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Se há coisa em que acredito piamente é no binômio de Newton. Pouco importa que não o compreenda, já que não compreendo muitas outras coisas. O binômio de Newton fascinou a minha juventude, e ainda fascina a minha velhice. Também sempre admirei a Tábua de Logaritmos e os vasos comunicantes. E, como o cão de Pascal, uivo para a Lua, para a imensidão dos espaços vazios.

Um dia desses, apareceu-me no portão o homem de Piauí. E embora eu não acredite na existência do Piauí, que é uma ficção geográfica, fui atendê-lo quando ele apertou a campainha. Ele logo foi me dizendo: “Vim trazer-lhe a salvação”. Tão ardentemente desejava e desejo a salvação, que deixei entrar na minha sala o homem de Piauí. E ele logo me exibiu um jornal, explicando-me que bastava que o assinasse, que estaria salvo. Assinei o jornal, que agora recebo regularmente, e o homem de Piauí me garantiu: “O senhor está salvo”.

Quem diz, porém, que não estou salvo, e que não me salvarei, é o Padre Luís, que me tacha de herege impenitente.

— Padre, mas eu não fiz nada — eu lhe digo. 

-— Por isso mesmo, o senhor vai para o quinto dos infernos. 

Mas ao quinto dos infernos, prefiro o quinto de vinho tinto. 

Todavia, quero estar com minha mulher, com meus pais, e com alguns amigos. E, de qualquer maneira, “no céu, no céu, com minha mãe estarei…” 

Retifico-me: fiz muitas coisas, algumas más, e outras boas. Somadas as contas, tudo se equivale.

A verdade, num poço frio, morreu de pneumonia.

Capataz de uma fazenda que não tive, plantei arroz, feijão, e café. Criei gado no pasto.

Entre as minhas vacas, prefiro também a vaquinha branca, que me dá leite, achega-se à porteira e muge.

Todos os navios saíram dos portos.  Mas, pescador na lagoa, cantarolo:

 

                                               “Pescador da barca bela,

                                               Onde vais pescar com ela,

                                               Que é tão bela, pescador?”

 

Ela por elas, vou indo para Santiago de Compostela.

 

                                               “Ay flores do uerde pino,

                                               se sabedes nouas de meu amigo!

                                                           ay Deus, e hu é?

 

                                               Ay flores, ai flores do uerde ramo,

                                               se sabedes novas de meu amado!

                                                           ay Deus, e hu é?

 

                                               Se sabedes nouas de meu amigo,

                                               aquel que mentiu do que pôs comigo!

                                                           ay Deus, e hu é!

 

 

A formiguinha ruiva

 

          Annibal Augusto Gama

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Debruçado no parapeito da janela, ele vê a formiguinha ruiva, que se esconde numa fresta da madeira. A formiguinha disfarçada, que espera a mosca pousar ali, para a agarrar.

Teve um amigo e colega que não deixava varrer, do encontro de duas paredes, na sua sala, uma teia de aranha, com a sua aranha pernalta, lá em cima. Ele punha na vitrola o disco de Mozart, e começada a melodia, a aranha descia por um fio e permanecia escutando, embevecida, a música. Mas, quando tocava Beethoven, a aranha, mais que depressa, subia pelo fio e ficava lá em cima. Não apreciava Beethoven.

 

                                   Desta janela, exígua fresta

                                   Elegeu por morada uma formiga.

                                   Ao peitoril, como por praça antiga,

                                   Sai a passeio, a ver o sol, em festa.

 

                                   Foge ao menor rumor, lépida e lesta,

                                   (Lembrando-me, permita-me que t´o diga,

                                   A almazinha que tens, querida amiga,

                                   E que a todos se esquiva por modesta).

 

                                   Se é surpreendida acaso e o tempo é estreito

                                   Para tornar, fugindo, à frincha escura,

                                   Súbito estaca… nem um passo além!

 

                                   E ruiva como a luz, e de mistura

                                   Com a luz, na luz se some de tal jeito,

                                   Que estando à vista, não a vê míngüem.

 

O poeta Alberto de Oliveira, com o seu bigode torcido em ponta, fala, em outro poema, em “cheiro de espádua”. Mas era a tua espádua, Aninha, que cheirava bem.

Agora, ele está, menino, agachado sobre o rego, mo quintal, construindo com pauzinhos, uma ponte, para as formigas passarem de um lado para outro da torrentezinha.

— Que está você fazendo aí, menino?

— Estou fazendo uma ponte, para as formigas atravessarem o reguinho 

— Que menino mais bobo.

Bobas ou espertas eram também as formigas, que se recusavam atravessar sobre a sua ponte. Não acreditavam na sua engenharia.

Mais tarde, muito mais tarde, ele veria a ponte de ferro, que Euclides da Cunha construíra sobre o Rio Pardo. E, para cá, a casinhola de sarrafos, onde ele escreveu algumas páginas de Os Sertões. Mais duro foi atravessar a ponte sobre o Rio Grande, da fazenda à Estação de Jaguara. O pai ia à frente e recomendava: “Não olhe para baixo”. Lá embaixo, um abismo, as águas ferviam, E se viesse o trem, pela ponte? Não vinha, não era hora dele.

 E ele chegou afinal à Estação de Jaguara, trêmulo, as pernas bambas.

 Mas tinham ainda de voltar, santo Deus!

Hoje ele percebe que todas as pontes ruíram atrás dele.

 

 formiguinha

 

 

 

Creio em Deus Pai…

 

          Annibal Augusto Gama

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Tendo sido batizado na Igreja de Nossa Senhora Aparecida, aos três anos, sendo meu pais o Doutor Ciríaco André de Matos Pereira e Dona Mariana Correia Matos Pereira, padrinhos o Cavalheiro Fidalgo Tomé de Abreu e Albuquerque e sua mulher Dona Carlota Figueiredo de Albuquerque, oficiante o Padre Domingos da Santa Fé, tornei-me católico, apostólico romano, por força do compromisso que em meu nome fez a Deus o meu padrinho.

Até os quatro anos, não pensei em Deus nem na sua corte de anjos e santos. Até que comecei a ouvir os trovões e o raios, tão abundantes em nossa cidade, que abalavam nossa casa e faziam minha mãe ir acender velas para Santa Bárbara e São Jenônimo, exclamando, aterrada,“Deus nos acuda, é o fim do mundo!”

Comecei então a saber que Deus, ainda que nos mandasse trovões e raios que te partam, ao mesmo tempo nos socorria e acudia. E que havia também, ao seu lado, os santos e as santas, intermediários das nossas súplicas. Também, aos sete anos, levaram-me a ser catequizado, para mais tarde receber a Primeira Comunhão.

— Crês em Deus? —  perguntava-me a minha catequizadora, uma senhora gorda, de bandós e cabelos brancos, e eu respondia: “Sim, creio”. E ela prosseguia: “Amarás a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Honrarás pai e mãe. Não cobiçarás a mulher do próximo.”

Ensinou-me ela, também, o Pai Nosso que estais nos céus, a Ave Maria, o Credo, e outras orações. E eu devia, pela manhã, ao despertar e à noite, ao ir dormir, além de escovar os dentes, ajoelhar-me à beira da cama e rezar algumas orações. Por outro lado, a Santíssima Trindade, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, representados por um triângulo equilátero, me perturbava. E ainda mais quando, já na escola, eu via o triângulo equilátero dentro do qual havia um olho aberto e a legenda “Deus me vê”. Deus me via todo o tempo, era um espião.

Terror e amor…

Tomei conhecimento também do Diabo, que era um sujeito muito safado, com chifres, rabo, pés de cabra e fedendo a enxofre.

Não obstante, meu Pai, quando estava encolerizado, costumava dizer: “O Diabo que te carregue!”

Os nomes sujos eram proibidos e, se acaso os pronunciássemos, minha Mãe mandava: “Vá lavar a boca, menino!”, e aplica-me um beliscão. Na casa, o único que não era mandado lavar a boca, nem era beliscado, era o meu Pai.

Na abóboda pintada da Igreja, eu via Deus barbudo, o seu filho Jesus, e o Espírito Santo, que era uma pomba. E nuvens, profetas, santinhos e santarrões, além do altar-mor e dos nichos com as imagens dos e bem-aventurados.

Cantava-se, em coro:

 

                                   “No céu, no céu,

                                   Com minha Mãe estarei…”

 

Ora, minha Mãe estava em casa, ou ali sentada, num banco, coberta por um véu negro.

As procissões da Semana Santa, ou de outros dias santificados, saiam da porta da Igreja e o povo desfilava pelas ruas, atrás dos andores carregados por pessoas vestidas de opa, com a Banda de Música atrás. O turíbulo, o cheiro de incenso, na nave, as beatas ajoelhadas, os sinos batendo. 

De costas, o padre murmurava:

— Introibo ad altarem Dei.

E o coroinha completava 

— Ad Deum qui laetiificat juventutem meam.

Na outra calçada, de outro lado da rua, um pouco acima da nossa casa, uma menina me olhava e eu olhava a menina.

 

 

 

Nota do Editor

A menina na outra calçada era minha mãe, que um dia, disputando uma cadeirinha com o menino, arranhou-lhe fundo o rosto, deixando uma cicatriz.

Passados muitos anos, o menino já moço voltaria à cidade da infância, de onde se mudara. Acabava de ter um trabalho premiado na “Semana Euclidiana”, realizada em São José do Rio Pardo, e aproveitava para passar alguns dias na Guaxupé natalícia e rever amigos e familiares.

Reencontrou-se então com a menina que o havia ferido, também já moça.

Soube, então, que a marca que ela lhe deixara seria para sempre.

(Os nomes no primeiro parágrafo são fictícios)

 

 

Os urubus, as aves e outros pássaros

 

             Annibal Augusto Gama

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Os urubus, no chão, com um arranque, batiam as asas ― flap! flap! flap! ― subiam, subiam, e ficavam fazendo curvas lá no alto, no céu azul. Quando chovia, e depois que as águas deixavam de cair, vinham pousar na cumeeira do telhado, e ali permaneciam, hieráticos, de asas abertas, para as secar. Se caminhavam no chão do quintal, pareciam desajeitados. Não eram muito estimados, aves pretas que viviam de carniça. Mas tudo tem a sua utilidade neste mundo, até os carrapatos.

Havia, porém, as aves e os pássaros gentis, o beija-flor, as andorinhas, os sanhaços, os canarinhos da terra, a rolinha fogo-apagou, o tico-tico, o joão-de-barro, as pombinhas, a viuvinha, os bem-te-vis, os periquitos, os pássaros-pretos, a tesourinha, tantos, tantos, inumeráveis. Ao longe, no dia abrasador, a araponga malhava no ferro. Nos descampados, as seriemas, nos ervaçais as codornas. A coruja, coitada da coruja!, não era benvista, embora sábia, porque se lhe atribuía o mau agouro, Rasgava mortalha, ao redor das casas onde havia um moribundo. Na fazenda, acharam uma grande coruja, ferida na asa. Trouxeram-na para casa, e deixaram-na empoleirada num quarto de despejo, onde ele passou a tratá-la, trazendo-lhe regularmente pedaços de carne e água. Agarrada no pau da cabeceira de uma cama, ela estagiou ali, alguns dias, e já reconhecia o rapazinho. Tic-tic-tic, fazia-lhe com o bico curvo. Até que se curou, e ele a levou para o parapeito da janela aberta. Ia anoitecer, e a corujona sondou, sondou os arredores . Em seguida alçou vôo. Mas ainda voltou para se despedir dele e, uma vez ou outra, ali aparecia, para o saudar.

Era na época em que, em todas as antologias, havia o soneto de Raimundo Correa:

 

                                   Vai-se e primeira pomba despertada…

                                   Vai-se outra mais… mais outra… enfim dezenas

                                   De pombas vão-se dos pombais, apenas

                                   Raia sanguínea e fresca a madrugada…

                                   […]

                                  

                                   Também dos corações onde abotoavam,

                                   Os sonhos, um por um, céleres, voam,

                                   Como voam as pombas dos pombais;

 

                                   No azul da adolescência as asas soltam,

                                   Fogem… Mas aos pombais as pombas voltam,

                                   E eles aos corações não voltam mais…

 

O Irmão Reitor, marista, do ginásio, professor de português, insistia, em cada nova classe de alunos, em declamar o soneto de Raimundo Correa. Ficava de pé, atrás da sua mesa, rubicundo, e agitava as mãos e os braços  enfiados na batina negra. As pombas voavam, Ele, porém, parecia antes um urubu.

Em muitas casas, nos seus poleiros, havia papagaios.  Desbocados alguns, berrando palavrões. Outros rezavam o padre-nosso. Bebiam café.

 

                                                Purrupaco, tataco,

                                               A mulher do macaco,

                                               Ela pinta, ela borda,

                                               Ela toma tabaco,

                                               Torrado num caco…

 

Você, hoje, parece que viu passarinho verde…

E há aquela estória de Millôr Fernandes, do cuco do relógio que, na hora de bater as horas, saia da sua casinhola e perguntava: “Ei, velhinho, que horas são?”

Todas as gaiolas estão com a portinhola aberta.

Os passarinhos fugiram.

 

 

“Passaredo” (Francis Hime / Chico Buarque), MPB4

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=8ZbfbyLoCCE[/youtube]

 

 

O julgamento celestial

 

Nestes tempos tão bicudos

por que passa a Madre Igreja

(dizem que em decadência),

Papa indo, Papa vindo,

não custa se precatar,

ouvindo a voz da experiência…

 

 

              Annibal Augusto Gama

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Suponho que no céu, como aqui, há várias instâncias, desde um juiz singular até os tribunais coletivos e o Supremo Tribunal Celeste. Desta maneira, o pecador pode recorrer de um juiz para outro, e ir até o Supremo Tribunal Celeste, quando a pena ou a absolvição serão definitivas. Enquanto isso, ele gozará de liberdade, e poderá conviver com os santos. Advogados e chicanistas é que não devem faltar por lá, e é de se crer que também haja algum compadrismo, e quem vá cochichar na orelha dos juízes. As questões de ordem igualmente serão muitas, e suspenderão o julgamento de mérito. As nulidades processuais, ilegitimidade das partes, e outras, inépcia da inicial, também hão de valer.  Afinal os julgamentos protelar-se-ão, pois não deixará de existir algum juiz que peça vista dos autos, e fique com eles por séculos e séculos, porque tem a eternidade a seu favor. A prescrição também valerá, bem como ação revisional. Por último, cansados, os juízes baterão o martelo. A suspensão condicional da pena será cumprida no purgatório. Assim, dificilmente o pecador será condenado definitivamente, com trânsito em julgado da sentença, e será enviado para o inferno. O Promotor de Justiça há de ser, naturalmente, o Diabo. Os advogados, os nossos santos de devoção. E há santos de grande influência e prestígio, sempre ouvidos com acatamento, como Nossa Senhora, São Francisco de Assis, e Santo Antônio, que conseguiu tirar o pai da forca.

Eu, por mim, já outorguei mandato, com plenos poderes, a Nossa Senhora Aparecida e a Santo Antônio. Se for o caso, ela ou ele impetrarão habeas-corpus, para mim. E hão de obtê-lo. 

Cada dia e cada noite, levo novos subsídios para os meus defensores, através de orações. Tenho também alguns álibis: não estava ali, nem lá, quando o fato aconteceu. 

Há ainda os pecados veniais, e de bagatelas, que passam, sem julgamento. E a prisão domiciliar, por força, existirá.

Enquanto isso, a citação pode ser evitada, achando-se o réu em lugar incerto e não sabido. Por isso mesmo, não dou o meu endereço a ninguém.

Abuso processual? Não, senhor, tenho o direito de me defender.

Creio também que lá se fazem reformas processuais e do Código Penal, e alguns crimes de outrora foram abolidos. Nem é admissível a “reformatio in pejus”. 

Por isso, estou tranquilo, e acho que não irei para o inferno. 

Vocês, meus amigos e eventuais leitores, devem fazer como eu: contratem logo os seus advogados 

Há ainda o juiz arbitral, que são os padres, nos seus confessionários.

Só vai para o inferno quem quer, e por pecados cabeludos.

Ainda assim, acho que as sentenças celestes jamais transitam em julgado. Adão e Eva estiveram lá por bons tempos, e Cristo não foi buscá-los?

O Diabo é um mau causídico, e acabará por fechar a sua banca.

 

 

Michelangelo (O Juízo Final, Capela Sistina)

 “Juízo Final”, Michelangelo, Capela Sistina