Fruto da espera
Incomensurável
Meu canto tardo
Efêmero paira
Etéreo jaz.
Do BLOGHETTO SELMA BARCELLOS, Barquinho e Estrelinha, parceirinhos queridos, como Vinicius gostava de dizer.
O amor de Vinicius pelo RIO DE JANEIRO…
Vejo de minha janela uma nesga do mar verde-azul de Copacabana e me penetra uma infinita doçura. Estou de volta à minha terra… A máquina de escrever conta-me uma antiga história, canta-me uma antiga música no bater de seu teclado. Estou de volta à minha terra, respiro a brisa marinha que me afaga a pele, seu aroma vem da infância. Retomo o diálogo com a minha gente. Uma empregada mulata assoma ao parapeito defronte, o busto vazando do decote, há toalhas coloridas secando sobre o abismo vertical dos apartamentos, dá-me uma vertigem. Que doçura!
Sinto borboletas no estômago, deve ter sido o tutu com torresmo ontem misturado ao camarão à baiana de anteontem misturado à galinha ao molho-pardo de trasanteontem misturada aos quindins, papos-de-anjo, doces de coco do primeiro dia. Digiro o Brasil. Qual canard au sang, qual loup flambé au fenouil, qual pâté Strasbourgeois, qual nada! A calda dourada da baba-de-moça infiltra-se entre as papilas, elas desmaiam de prazer, tudo deságua em lentas lavas untuosas num amoroso mar de suco gástrico…
– É a brazuca! – disse-me Antônio Carlos Jobim balançando a cabeça com ar convicto, enquanto empinava o seu VW em direção ao Arpoador.
Há uma semana e meia atrás, pelas cinco da manhã, eu tocava violão para uns brasileiros e espanhóis da terceira classe, no Charles Tellier, que me trazia da Europa. De repente, um clarão lambeu o navio e todo mundo correu para a amurada. Era um farol de terra, possivelmente o de Cabo Frio. Havia entre nós um padre que regressava depois de quatro anos de estudos em Roma e Paris, um bom padre mineiro cheio de zelo pela nova missão de que vinha investido. Juro que vi o velho palavrão admirativo, o clássico palavrão labial de assombro formar-se em sua boca sem que ele sequer desse por isso.
Domingo passado fui almoçar na casa materna. Muito mais que as coisas vistas, os sons é que me emocionaram. Lá estava na parede o velho quadro de Di Cavalcanti, representando um ângulo da rua Direita pouco depois do antigo Hotel Toffolo, em Ouro Preto, mas o que me chegou foi o tinir das ferraduras dos burrinhos nas velhas pedras do calçamento, de mistura ao soar dos sinos e à voz presente de minha filha Luciana chamando-me: “Pai… iê!” para que eu fosse ver qualquer coisa. Depois, o sussurrar de vozes se amando baixinho no escuro de um beco, sob a luz congelada de estrelas enormes…
– Você gosta de mim?
– Gosto.
– Muito?
– Muito!
Minhas artérias entraram em constrição violenta, o peito doeu-me todo e eu me levantei e fui até a rua para respirar. Sei que morrerei um dia de uma emoção assim. Mas não adiantou. Lá estava o capim brotando de entre os paralelepípedos, lá estava a ladeira subindo para o verde úmido do morro, ali à esquerda ficava um antigo apartamento onde eu morei. Naquele tempo eu ganhava novecentos mil-réis por mês e estudava para o concurso do Itamaraty. Dava apertado, mas dava.
Por que será que só no Brasil brota capim de entre os paralelepípedos, e particularmente na Gávea? Existe por acaso um sorvete como o do seu Morais às margens do Ródano? Vêem-se jamais as silhuetas de Lúcio Rangel e Paulo Mendes Campos numa cervejaria em Munique? Quem já viu passar a garota de lpanema em Saint-Tropez?
Adeus, mãe Europa. Tão cedo não te quero ver. Teus olhos se endureceram na visão de muitas guerras. Tua alma se perdeu. Teu corpo se gastou. Adeus, velha argentária. Guarda os teus tesouros, os teus símbolos, as tuas catedrais. Quero agora dormir em berço esplêndido, entre meus vivos e meus mortos, ao som do mar e à luz de um céu profundo. Malgrado o meu muito lutar contra, eis que me vou lentamente tornando – logo eu! – num isolacionista brasileiro.
Edição e narração de José Márcio Castro Alves
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As quatro estações
Eis que afinal, mansamente,
o outono se entranha com seus tons
de marrons, beges, vermelhos breves,
que não são do outono em Paris,
mas daquele em que me fiz.
A primavera longeva da infância,
com sua ânsia de florescer,
sua volúpia multicor e inebriante, estiolou,
e se acomodou no pequeno jardim
num canto esconso de mim.
O verão suarento da juventude,
com seus rompantes sóis,
ardores, falsas dores, ruídos rudes,
parecia que nunca se acabava
e a agitação ofegante do dia invadia a noite e a madrugada.
Os dias são tépidos agora
e se encurtam na longa noite
que esfria e prenuncia
o inverno álgido que virá
com sua verdade de pedra:
a primavera que houvera outrora,
outra nunca mais haverá.
Não me lembra agora se li em algum lugar ou se me contaram, sei que me ficou na cabeça a ideia.
O pai de Gwyneth Paltrow levou-a ainda adolescente para lhe apresentar Paris, dizendo: “Queria que o primeiro homem que te levasse a Paris fosse alguém que nunca te decepcionasse”.
Carolina e Isabella conheceram Paris sem mim. E não se decepcionaram, felizmente.
Júlia veio comigo pela primeira vez. Espero que não a decepcione nunca, para que Paris lhe seja sempre uma festa, como tem sido nestes dias.
Manuela, aos três, também veio pela primeira vez.
Não veio apenas com Babu, mas veio também com Babu, que pela primeira vez vê Paris encantando-se pelos olhos dela.
De alumbramento em alumbramento, nenhum vão momento.
Como destacar apenas um?
Talvez pela minha fixação pelas palavras, escolho a descoberta de outras línguas, que não a dela.
Veio preparada para dizer as duas palavrinhas mágicas em Paris, “bonjour” e “merci”, mas num parquinho se encontra, e confronta, com outras crianças, que falam francês, inglês, japonês e alemão.
Desperta para tantas outros idiomas, mas não se aperta.
Inventa o próprio o idioma, cheio de sonoridades.
A palavra mais repetida, e divertida, desse javanês manuelino é “záyom”, que serve como uma espécie de argumento de autoridade ou comando definitivo.
A menininha lhe diz em inglês, “jump” ou “no” e ela retruca com um inquestionável e fulminante “záyom”!
Na Pont des Arts, ela ficou maravilhada com os cadeados encadeados para que as pessoas que se amam nunca se separem.
Todos colocamos um, e é ela quem joga as chaves de cada um nas águas do Sena.
Depois, sorridente, me diz: “Babu, agora mamãe, papai, você, todo mundo nunca mais vai morrer”.
Como não morrer?
“Eram poucos livros, estendidos sobre o jornal, na calçada e subindo pela parede úmida, um sobre o outro. Livros de um sonhador, talvez um ativista. Livros de esquerda. O de capa cinza mole, pequeno e gordo, era o Canto General, de Pablo Neruda. Ali expostos, solitários, naquela noite úmida, pareciam fruto de um botim, despojos de um derrotado. Eram como as botas que o soldado arranca das pernas inúteis do que já tombou. Havia um drama por trás daquela oferta mirrada, naquele vão escuro da Avenida São João. Uma história triste que os livros pareciam querer contar. Estamos aqui, mas quem nos lia está preso. Ou então, estamos aqui, mas quem nos lia conseguiu escapar. Quem sabe naquela mesma hora o dono desses poucos livros era interrogado num pau de arara, tomando choques elétricos no pênis? Ou talvez já estivesse morto? Ainda que tenha escapado, é certo que sua pequena estante foi desfeita pela violência. O vendedor não teme exibir esses livros. Não o assusta o golpe militar ainda em curso; os rumores de prisões. Não sabe que são livros de esquerda. Não sendo o dono dos livros, quem é ele? Seria o seu algoz? Um cúmplice da repressão? O encarregado da pilhagem? Ou um oportunista qualquer? Comprei o livro de Neruda sem olhar para a sua cara. Canto General é um longo poema épico de exaltação ao continente americano, suas florestas, seus pássaros, seus répteis suas, frutas, rios e montanhas. Também descreve os tipos desse continente mil vezes saqueado, os grã senhores, os golpistas, os señoritos a serviço dos estrangeiros. O Neruda dos dez poemas de amor y una canción desesperada era um dos nossos heróis. Anos depois, partimos para um exílio voluntário em Londres. Levei, entre poucos livros, o Canto General. No Brasil seguiram-se as prisões, fugas, desaparecimentos. No Chile, venceu a Frente Popular. Dezenas de brasileiros refugiaram-se no Chile, alguns participando do governo Allende. Quem sabe o dono daqueles livros na calçada era um deles? Neruda torna-se embaixador do Chile na França Uma noite, dá um recital no Queen Elizabeth Hall, de Londres. Após os aplausos, vou vê-lo no camarim; nas mãos, o pequeno e envelhecido Canto General. Não lhe digo nada, apenas lhe estendo o livrinho e uma caneta. Neruda fita-me com aqueles olhos de peixe grande. Não estranha uma edição tão antiga e já tão gasta de seu Canto General. Não pergunta meu nome. Escreve na contra – capa, num só lance: “A usted, Pablo Neruda.” A síntese do poeta. Depois, aconteceu o que aconteceu. Pinochet assassinou todos os esquerdistas que conseguiu pegar, mais de dez mil, estima-se. Nunca se saberá ao certo. Também nunca saberei se entre eles estava o dono daquele Canto General. “A usted”, lhe digo mentalmente, sempre que releio seu livro, sem saber até hoje quem era ele, se escapou, ou desapareceu, numa das fossas coletivas do massacre chileno.”
(Bernardo Kucinski / publicado na revista Cult).
P. S.
Dia 11/9/1973: golpe militar no Chile.
Dia 12/9/1935: nascimento de Geraldo Vandré (AQUI).
“De tanto levar frechada
do teu olhar
Meu peito até parece sabe o quê
Tálbua de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar (não tem mais)”
(Adoniran Barbosa, “Tiro ao Álvaro”)
“Cada tálbua que caía,
Duia no coração,”
(Adoniran Barbosa, “Saudosa Maloca”)
TABUAME
As Tábuas da Lei
A tábua sincrônica
A tábua de logaritmos
A tábua de ressonância
A tábua de matéria.
A tábua de marés
A tábua corrida
A tábua rasa
A tabuada
As tábuas do caixão.
Eis a nossa condição:
levar tábua da vida,
sem tábua de salvação.
Este fidalgo engenhoso
(e cavaleiro manhoso)
ostenta ultimamente
uma barbicha que mente
a sua vera idade
(que é a mesma deste confrade):
se a barba parece branca
a vida lhe segue franca.
SONETO ÉPICO
Brenno Augusto Spinelli Martins
Sexagenária sombra que me assombra,
embranquecendo a têmpora e o bigode,
fraquejando a têmpera do cipó de
uma árvore que, frágil, quase tomba.
Mas o sonho evanescente me acorda
e o céu me mostra uma estrela brilhante
chamando para a vida e, nesse instante,
meu coração do grande amor recorda.
Na fantasia de um engodo pélvico
ressurge o falso herói de glória pouca.
Como convém a um poema épico,
desembainho a espada e num só golpe
rompo os grilhões dessa masmorra louca
e fujo para o último galope.
SONETO SOLIDÁRIO DE ANIVERSÁRIO
Para o jovem ancião Brenno Augusto,
companheiro de jornada.
Passem os dias, que é só o que eles fazem,
findem utopias noutras que virão,
prossiga a vida assim sua viagem
que nenhum dia terá sido em vão.
Que as esperanças não se esmoreçam
e nem percam a ternura jamais,
que todas as noites nos amanheçam
com desejo de ser um pouco mais.
À medida que o cabelo embranquece
os fios de alegrias e desenganos
dessa aventura que a ventura tece,
somemos aquilo que foi perdido
para o balanço de ganhos e danos
multiplicar o que foi dividido.