Partilhei com aquele menino alumbramentos, espantos e descobertas da infância. Só ele podia entrar nas minhas brincadeiras. Até me atirar mamonas.
Volta e meia, sem que entendêssemos por quê, estávamos de mãos dadas, olhando fixamente um para o outro.
Um dia, desenhei a lápis o contorno de duas mãos no mármore do degrau da varanda e escrevi em letras microscópicas: “Vamos ficar sempre assim?”.
Claro que a mãe leu, que me fez apagar tudo, que me inquiriu sobre o “assim”, proibiu o menino de brincar lá em casa…
Mudou-se algum tempo depois. Adolescemos em bairros distantes.
Fui encontrá-lo anos mais tarde, ao buscar o filho na escola onde eu lecionava.
_ Selma, lembra de mim? – perguntou inseguro, em meio à pequena multidão que se formava à saída das aulas. Assenti com um sorriso, trocamos breves palavras.
Vontade de dizer o quanto aquele imenso quintal perdera a graça sem nós… Não consegui.
Ontem, ao achar esta crônica dobradinha na caixa de delícias (cultivo a mania), revi o menino, nossas mãos, o jardim. E disse.
ANA PAULA
Só a conheci quando tinha seis anos. Não sei o que anda fazendo. Nem sei como é. Lembro que era gordinha, charmosa, e muito educada.
Cabelos lisos, negros, com cheiro de goma misturado à flor de laranjeira.
Nossa brincadeira predileta consistia em remar numa banheira branca encalhada no pátio da creche Patinho Feio. Eu tapava um olho como pirata e a protegia dos canhões inimigos (as mamonas da gurizada). Desde ali, eu pisco quando falo a verdade. A verdade fica parecendo uma mentira, não tem jeito.
Será que trabalha num banco, casou, tem filhos? Será que lembra de mim?
Pensava que a namorava no jardim de infância. Porque segurava minha mão para entrar em aula, almoçar, escovar os dentes. Em fila indiana, do mais baixo para o mais alto. A sorte é que tínhamos a mesma altura e ficávamos próximos. Lado a lado. Quando segurava a minha mão, me considerava um eleito. Não percebia que todas as crianças eram obrigadas a segurar a mão do seu vizinho. Acreditava que segurava minha mão porque me desejava.
Um dia, você me falou que a gente deveria encontrar um tesouro para a nossa brincadeira. Para soar mais real. Não duvidei duas vezes: roubei colares de minha mãe, embrulhei em uma folha de ofício e entreguei o embrulho como pedido de casamento.
Escrevi um bilhete
“Para casar comigo, meu tesouro.”
Tenho comigo o papel, um escapulário amassado. Relendo, vejo que escrevi:
“Pra cazar com eu.”
Como há pares que pisam nos pés na hora de dançar, eu pisei nas palavras.
Natural para um menino desajeitado, tímido, aprendendo a escrever. Foi meu ato de maior coragem.
Mas sua mãe descobriu o presente, minha mãe descobriu o sumiço de suas joias. Foram devolvidas inclusive com a cartinha. Houve reunião na escola. Não mais a vi, retirada às pressas da turma pela convivência perigosa comigo.
Queria agradecê-la: nunca me arrependi, nunca deixei de me roubar para sustentar um amor. Melhorei apenas um pouco o português.
Beijo
Fabrício Carpinejar, o pirata