Nestes tempos tão bicudos
por que passa a Madre Igreja
(dizem que em decadência),
Papa indo, Papa vindo,
não custa se precatar,
ouvindo a voz da experiência…
Annibal Augusto Gama
Suponho que no céu, como aqui, há várias instâncias, desde um juiz singular até os tribunais coletivos e o Supremo Tribunal Celeste. Desta maneira, o pecador pode recorrer de um juiz para outro, e ir até o Supremo Tribunal Celeste, quando a pena ou a absolvição serão definitivas. Enquanto isso, ele gozará de liberdade, e poderá conviver com os santos. Advogados e chicanistas é que não devem faltar por lá, e é de se crer que também haja algum compadrismo, e quem vá cochichar na orelha dos juízes. As questões de ordem igualmente serão muitas, e suspenderão o julgamento de mérito. As nulidades processuais, ilegitimidade das partes, e outras, inépcia da inicial, também hão de valer. Afinal os julgamentos protelar-se-ão, pois não deixará de existir algum juiz que peça vista dos autos, e fique com eles por séculos e séculos, porque tem a eternidade a seu favor. A prescrição também valerá, bem como ação revisional. Por último, cansados, os juízes baterão o martelo. A suspensão condicional da pena será cumprida no purgatório. Assim, dificilmente o pecador será condenado definitivamente, com trânsito em julgado da sentença, e será enviado para o inferno. O Promotor de Justiça há de ser, naturalmente, o Diabo. Os advogados, os nossos santos de devoção. E há santos de grande influência e prestígio, sempre ouvidos com acatamento, como Nossa Senhora, São Francisco de Assis, e Santo Antônio, que conseguiu tirar o pai da forca.
Eu, por mim, já outorguei mandato, com plenos poderes, a Nossa Senhora Aparecida e a Santo Antônio. Se for o caso, ela ou ele impetrarão habeas-corpus, para mim. E hão de obtê-lo.
Cada dia e cada noite, levo novos subsídios para os meus defensores, através de orações. Tenho também alguns álibis: não estava ali, nem lá, quando o fato aconteceu.
Há ainda os pecados veniais, e de bagatelas, que passam, sem julgamento. E a prisão domiciliar, por força, existirá.
Enquanto isso, a citação pode ser evitada, achando-se o réu em lugar incerto e não sabido. Por isso mesmo, não dou o meu endereço a ninguém.
Abuso processual? Não, senhor, tenho o direito de me defender.
Creio também que lá se fazem reformas processuais e do Código Penal, e alguns crimes de outrora foram abolidos. Nem é admissível a “reformatio in pejus”.
Por isso, estou tranquilo, e acho que não irei para o inferno.
Vocês, meus amigos e eventuais leitores, devem fazer como eu: contratem logo os seus advogados
Há ainda o juiz arbitral, que são os padres, nos seus confessionários.
Só vai para o inferno quem quer, e por pecados cabeludos.
Ainda assim, acho que as sentenças celestes jamais transitam em julgado. Adão e Eva estiveram lá por bons tempos, e Cristo não foi buscá-los?
O Diabo é um mau causídico, e acabará por fechar a sua banca.
“Juízo Final”, Michelangelo, Capela Sistina
Muito oportuna e extremamente bem humorada crônica Dr. Annibal.
Parabéns.
Grande Dr. Annibal Augusto Gama: sendo pai do Tom Gama, a crônica só podia ser perfeita.
Abraçaço.
Dr. Annibal, é dos bem-humorados o Reino dos Céus. Apresente esta sua crônica e dispense intermediários. Se bem que gostaria de levar dois dedinhos de prosa com o senhor sobre o inferno…
Abraço afetuoso,
Selminha
P.S.: Maravilha de texto, poeminha introdutório, ilustração e música. Arte e literatura, na magistral expressão de Ernesto Sábato, permitindo-nos construir e vivenciar “outros destinos”. Exercício pleno da liberdade…
Adorei, Dr. Annibal! Mas…a gente já “pena” tanto por aqui…rs….de qualquer forma, melhor um litigiozinho prá divertir a gente do que viver na paz celestial, que deve ser um tédio..rs…
Adorei o “prisão domiciliar”. Adorei o texto. Um abraço pro sr.
Sophie, saudade de você por aqui.
De vez em quando, como agora, deixe um pouco de lado as suas lides e venha lidar cá.
Você nem precisa de mandato e sempre atua pro bono.
Besos.
Avalio todos os comentários que me precedera. Mas quero deixar registrado o meu e minha leitura.
Um dos melhores textos que li pelos caminhos virtuais. Numa primeira leitura, entendi o com um certo humor, da melhor qualidade. Resolvi relê-lo . E não vi humor e sim um mundo. A verdade de um caminho, não só celestial, prefiro entendê-lo como um julgamento histórico ( da nossa história), em terra firme.