(…) Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana, dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
(…) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
(Resíduo)
(…) Quem te esperou do outro lado?
Tua filha, ou o anjo torto
que te acompanhou de esguelha
e te deixou na contramão?
Pai morto, mãe morta, irmão
morto, e as namoradas todas
te acenando o mesmo adeus.
Mas se a vida é impraticável,
construíste um elefante
de papel e de ternura
que no dorso te levou
para a fazenda do ar.
(…) Cansado de ser moderno
agora és eterno
e apenas contemporâneo
de ti mesmo. Nem teu corpo
veste mais o paletó,
a gravata. Os teus óculos
devassam a bruma, a broma
da Máquina do Mundo,
que virou um claro-enigma.
(Resíduo,“Dez anos da morte de Drummond”, in “Herança Jacente”)