Posts from novembro, 2013

Ela faz cinema

 

                         Bell Gama

bell gama

 

 

 

 

 

 

 

 

Fade in.

A primeira vez em que ela o viu foi pelo view finder. A inglesa e rara Bell-Howell Super8 encontrada em um bazar despertou seu sonho antigo. Sempre quis ser cineasta. Agora, com a câmera nas mãos fazia seu primeiro filme. Ele era o protagonista.

Depois de muito mexer na câmera para tentar fazê-la funcionar, ela desistiu. Definitivamente não era cineasta mas a beleza da peça a contagiou. Não resistiu. Empunhou a câmera, repousou delicadamente seu olho no pequeno orifício e como num susto acabou fazendo uma panorâmica. Apesar de rápido, o movimento foi suficiente para que ela analisasse todas as quinquilharias expostas ali. Muitas pareciam ter sido retiradas de sua memória, da infância que parecia tão distante quanto o seu sonho em fazer um filme.

Ao final do movimento, ele. Tilt. Estava vestido de calça jeans, uma camiseta branca e um tênis despojado. Bastava. Achou bonito de costas. Gostou mais quando ele virou lentamente e mostrou seu rosto. Ela descobriu o zoom.

Ficou surpresa com aquela figura naquele lugar tão abandonado quanto a sua vida nos últimos tempos. Procurou tanto aquele physique du role e agora nem havia precisado fazer casting. Ele simplesmente circulava olhando atentamente cada um dos objetos expostos. Brincava focando e desfocando. Ele, o objeto. O objeto, ele. Ele pegou um ferrorama antigo. Acariciou a caixa.  Certamente também se lembrava de sua infância.

Quando já estava completamente encantada com o jeito que ele olhava para o trenzinho, sentiu sua mão escorregar e bater em um gatilho. A câmera disparou fazendo aquele barulho inconfundível de cinema. Seu coração disparou quick motion. Flash Foward.

Transportou seu pensamento para onde gostaria que fosse o clímax daquele filme. Pensou nele. Em seu apartamento. Lusco fusco. Seus olhares cruzando em slow motion. Sua boca em close up. A boca dele em close up. As duas bocas em close up. Precisava de BG? Desnecessário. O ruído da câmera girando o carretel embalaria o filme mudo dando a dramaticidade necessária para um momento como aquele.

Corte. Voltou em pensamento para o bazar. Perdeu a continuidade. Ele já estava dobrando a esquina. Um halo deixava o andar dele ainda mais bonito, mais poético. Long Shot. Ele, a rua, a tarde, a cidade. Seu filme.

Fade out.

 

“Ela faz cinema” (Chico Buarque), com ele

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=cGxtihukKiI[/youtube]

 

 

Ternura Antiga

 

 

 vulto de mulher

 

 

                                               TERNURA ANTIGA

 

                                               A voz morreu

                                               antes de explicar

                                               a ternura sem fim

                                               que eu trazia em mim.

 

                                               As mãos perderam

                                               o jeito do carinho

                                               e eu me perdi

                                               na busca do caminho.

 

                                               A ânsia de dizer tudo

                                               me fez dizer nada

                                               e a emoção contida

                                               o gesto incompleto

                                               a palavra não dita

 

                                               pairando no ar

                                               ficaram para lembrar

                                               a vida perdida

                                               antes de começar.

 

 

“Ternura Antiga” (Dolores Duran / Ribamar), com Tito Madi

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=h41JZGbdUwI[/youtube]

 

 

 

Plus je t’embrasse

 

 

“Plus je t’embrasse” (Jean Feline / Paul Marie Misrachi / Bruce Siever), com Blossom Dearie

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=9JftdyvyrAU[/youtube]

 

 A letra é uma delícia!

 

Plus je t’embrasse, plus j’aime t’embrasser
Plus je t’enlace, plus j’aime t’enlacer
Le temps qui passe ne peut rien y changer
Mon coeur bat quand tu t’en vas
Mais tout va bien quand tu reviens car
Plus je t’embrasse, plus j’aime t’embrasser
Je ne peux m’en passer

J’en ai tellement envie que j’oublie tout dans la vie
C’est sans cesse que j’aime t’embrasser

Plus je t’embrasse, plus j’aime t’embrasser
Plus je t’enlace, plus j’aime t’enlacer
Le temps qui passe ne peut rien y changer
Mon coeur bat quand tu t’en vas
Mais tout va bien quand tu reviens car
Plus je t’embrasse, plus j’aime t’embrasser
Je ne peux m’en lasser
J’en ai tellement envie que j’oublie tout dans la vie
C’est sans cesse que j’aime t’embrasser

Plus tu m’aimes, plus je t’aime
Plus j’aime t’embrasser !

 

 

Cotidiano

         

       Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

COTIDIANO

 

 

Biltres,

velhacos,

pilantras,

salafrários,

pusilânimes,

safardanas,

infames,

safados,

ordinários,

abjetos,

desprezíveis,

vis,

patifes,

canalhas.

 

                    Aos poucos,

                    corrompemos o dia.

                    Não deixamos de respirar,

                    de romper a pele

                    com as unhas.

 

 

QUOTIDIEN

 

 

Bélîtres,

coquins,

pleutres,

gredins,

gueux,

malotrus,

infames,

abjects,

bas,

avilis,

méprisables,

fripons,

vauriens,

salopards.

 

                    Petit à petit,

                    nous gâtons le jour,

                    nous n’arrêtons pas

                    de respirer,

                    nous déchirons notre peau

                    avec les ongles.

 

rompendo o dia 2 

 

 

Meu Deus, eu quero a mulher que passa…

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=lqtfa7vggtc[/youtube]

 

 

A MULHER QUE PASSA

 

                                                                       Vinicius de Moraes

 

Meu Deus, eu quero a mulher que passa.

Seu dorso frio é um campo de lírios

Tem sete cores nos seus cabelos

Sete esperanças na boca fresca!

 

Oh! como és linda, mulher que passas

Que me sacias e suplicias

Dentro das noites, dentro dos dias!

 

Teus sentimentos são poesia

Teus sofrimentos, melancolia.

Teus pelos leves são relva boa

Fresca e macia.

Teus belos braços são cisnes mansos

Longe das vozes da ventania.

 

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

 

Como te adoro, mulher que passas

Que vens e passas, que me sacias

Dentro das noites, dentro dos dias!

Por que me faltas, se te procuro?

Por que me odeias quando te juro

Que te perdia se me encontravas

E me encontrava se te perdias?

 

Por que não voltas, mulher que passas?

Por que não enches a minha vida?

Por que não voltas, mulher querida

Sempre perdida, nunca encontrada?

Por que não voltas à minha vida?

Para o que sofro não ser desgraça?

 

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Eu quero-a agora, sem mais demora

A minha amada mulher que passa!

 

No santo nome do teu martírio

Do teu martírio que nunca cessa

Meu Deus, eu quero, quero depressa

A minha amada mulher que passa!

 

Que fica e passa, que pacifica

Que é tanto pura como devassa

Que boia leve como a cortiça

E tem raízes como a fumaça.

 

 

Gente esquisita

 

            Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

 

Não vamos chamá-los malucos. Chamemo- los apenas esquisitos. O mundo está assim de gente esquisita.

Já contei numa crônica o caso da senhora de Itatinga, a dona Rute, uma santa senhora, que não tem mais do que um único pecado para contar ao padre nas suas confissões semanais — o pecado da inveja, ou melhor, o pecado de ter inveja de viúva. Uma inveja específica. É o único pecado que não conseguiu até hoje eliminar. Ela conta para quem quiser ouvir.

Outro caso de esquisitice, de grande esquisitice este, é o do Josefo, cunhado de um amigo nosso, de Curitiba. Desde algum tempo atrás o Josefo está numa situação difícil e incomum. Está desempregado e cheio de dívidas, porque não pode trabalhar. Não pode. É farmacêutico, tem saúde, mas não pode mais trabalhar porque entrou para um culto, uma dessas religiões digamos alternativas, e lá ensinaram que os medicamentos não servem rigorosamente para nada. Só servem para dar lucros à indústria farmacêutica. Ele deixou de acreditar nos remédios e abandonou a profissão.

Há também o caso da Renatinha, uma médica conhecida, quase amiga nossa, que, certamente por esquisitice, para toda e qualquer dor, só receita chá de folha de laranjeira.

Já o Cláudio Atílio, um cartunista amigo nosso lá de São Paulo, esse meteu na cabeça, sem mais essa nem aquela, que não deve comer ou beber alimentos que contenham leite ou qualquer dos seus derivados. Antes de comer alguma coisa, ele indaga seriamente, inclusive nos restaurantes, se na composição não entrou algum derivado do leite. Se entrou, ele não come. Além disso, apesar de gostar muito de macarrão, ele não come se o macarrão for do tipo parafuso.

Minha tia Ida, tia-avó na verdade, também era esquisita. Tinha um vício, mania ou sei lá o quê: toda santa noite, antes de dormir, tinha que tomar uma canequinha de pinga. Jamais  dormiu sem tomar sua canequinha de pinga.

E a Ana Maria? A Ana Maria, colega de escola da Maria Inês na juventude, tinha esquisitice próxima da de minha tia. Não podia passar pela estação ferroviária de Botucatu sem ali tomar um sorvete chicabon. Era diariamente. Estivesse o dia quente, frio ou gelado, se entrassem na estação de Botucatu, a Ana Maria tinha que tomar um chicabon. Nos dias mais gelados, quando todo mundo entrava no bar esfregando as mãos para tomar um café, um leite quente ou um pingado quase pelando, ela corria para tomar seu chicabon.

Outro bastante esquisito era o vizinho do Nestor. Sempre que bebia uns goles, o que ocorria principalmente nos fins de semana, o vizinho do meu amigo Nestor brigava com a mulher e nunca perdia a oportunidade de dizer que ia embora de casa. Fazia já uns quinze anos que ele dizia a mesma coisa. Um belo dia, no auge da briga, ele saiu com esta: “Sabe porque eu já não fui embora dessa casa? É porque meu pai já morreu, coitado. Se ele ainda fosse vivo, sabe o que ele ia dizer pra mim? Ele ia falar: Essa mulher não presta, meu filho. Larga dela. E eu largava”.

Mas ninguém, no meu entendimento, ganha em esquisitice da tia Lúcia. Tia Lúcia não come e não compra verduras. Diz ela que seu avô Florisvaldo, já falecido, contou-lhe certa vez que todo hortelão, grande, médio ou pequeno, possui um cachorro que tem o péssimo hábito de mijar nos canteiros da horta. Depois disso, ela não comeu mais verdura.

 

cachorro fazendo xixi

 

 

 

Confiteor

 

Um bom dia para me confessar…

 

 

confiteor 2

 

 

                                                            CONFITEOR

 

 

                                    Eu pecador me confesso

                                    a todos os poderosos que de apoderar não se cansam,

                                    a todas as virgens desconsoladas,

                                    aos mal aventurados Miguéis, Joões, Pedros e Paulos,

                                    que desfiam nossas misérias por todos os cantos,

                                    a todos que não são santos

                                    e a vós, irmãos,

                                    porque pequei muitas vezes,

                                    pelo que penso e não digo e não faço,

                                    por minhas desculpas, minhas tantas desculpas

                                    minhas máximas desculpas.

                                    Nada vos rogo ou irrogo,

                                    nem me penitencio por cometer todos os pecados,

                                    menos o pecado de não ter pecado.