Posts from abril, 2014

As coisas boas da vida

 

 

Dorival Caymmi é uma das coisas boas da vida, das melhores, para ser degustado sem pressa, slow food.

Como das melhores é esta gravação, creio que pouco conhecida, de um clássico do mestre (qual de suas canções não é um clássico?), feita pelo grupo Nouvelle Cuisine, com o excepcional vocalista Carlos Fernando Nogueira, que deixou a banda (a qual agora se chama apenas Nouvelle) para se dedicar à carreira solo.

 

 

grupo nouvelle cuisine

 

“Você não sabe amar” (Dorival Caymmi / Carlos Guinle / Hugo Lima), com Nouvelle Cuisine

 

 

 

E consta que esta seria a versão predileta do próprio Caymmi para um outro clássico seu.

 

 

Jane Duboc

 

“Só Louco” (Dorival Caymmi), com Jane Duboc

 

 

 

Todo menino baiano tem um jeito que Deus dá

 

       Selma Barcellos

Selma (perfil)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

caymmi 

Atrasado para uma gravação na TV, saiu praticamente da cama para o carro do Bôscoli, que lhe perguntou:

─ Não vai passar nem um pente no cabelo?

─ Não, eu já vim penteado da Bahia.

***

Carecia mesmo não. Ao rei primeiro de Maracangalha y Balangandã, à mais completa tradução de dengo com cheiro de mar, concede-se.

Para Ubaldo, Caymmi era um “fazedor de beleza”. E ainda tocava um violão recôncavo. Podia tudo.

 

Amigos, pelos 100 anos do mestre, comemorados hoje, o que vocês gostariam de ouvir? Digam lá. Por ora, Bethânia e o valentão mais doce da MPB.

 

http://www.youtube.com/watch?v=ZA1JGx-Frng

 

 

“A música é Caymmi, Caymmi é a música, e eu não seria músico se não fosse Caymmi.” (Tom Jobim)

 

“Tirem os olhos de mim, que eu nada sou além de um tocador de violão. O gênio se chama Caymmi. Então, vão ouvi-lo, vão entrevistá-lo. Ele é o mestre, ele é a música.” (João Gilberto)

 

“O melhor é Caymmi.” (Carlos Drummond de Andrade)

 

“Escrevi 400 canções e Dorival, 70. Mas ele tem 70 perfeitas e eu não.” (Caetano Veloso)

 

 

jangadeiro (Caymmi) (Jangadeiro, tela de Caymmi)

 

[…]

“Uma outra noite singular me levou para as praias da infância à espera da jangada. E se ela voltasse só? Gritei pelo nome dele, como na “Suíte dos Pescadores”. A névoa foi se desfazendo e vi não só uma embarcação. O mar vinha constelado de jangadas, os rudes remendos das velas brilhando feito veios de ouro. Estrelas cadentes iluminavam à volta com verde luz, verde arrebentação, e o que são as cristas das ondas a não ser arestas de astros antigos? Havia cardumes de rosas, rosas formosas de abril, saltando do mar como peixes, pétalas de escamas em tremeluzir de pálpebras. Chico, Bento, Pedro, Zeca, João Valentão, Anália, Jorge Amado, Carybé, todo o povo de Caymmi, o pobre povo brasileiro na miríade de jangadas. Voltavam com nossas sedes e fomes históricas, sofridos como nunca, torturados pelos cães dos poderosos, mas cheios de altivez e integridade nas roupas brancas rasgadas. E também, de relance, Dorival com a Senhora dos Navegantes, e ele sorria porque nosso futuro inova nosso passado, e neles Dorival Caymmi está sempre cantando, dulcíssimo de sal marinho, lampejo eterno em cada gota do presente.”

Podem achar que eu pirei. Pra escrever sobre Caymmi e a morte, só louco.”

(Aldir Blanc, em “A volta da jangada”, ‘O Globo’, 27/4/2014)

 

 

“Beijos pela noite”, dos amigos Caymmi, Jorge Amado e Carlos Lacerda. Bobagem…

 

 

 

 

Trajados de azul

 

 

Gabrielle Althen 2

 

 

Gabrielle Althen, poeta, romancista e ensaísta francesa vive entre Paris e Avignon.

Professora emérita da Universidade Ouest La Défense, agora, consagra-se à sua obra.

 

 

 

 

TEACH US TO CARE AND NOT TO CARE

 

 

Gabrielle Althen

 

 

La terre battue par la lumière cadavérique de l`orage n`émit pas une plainte. Le mot de mort fut écarté afin que le matin pût regagner tous les étages prescrits de la cervelle. Quant à l`humeur que ce sursaut ne permit pas d` appréhender, on la laissa sans hâte rougeoyer parmi les traces de l`éclair.

Cette maison ne voulait pas s`accoutumer à durer entre l`espoir et le regret. Il fallut bien l`ancrer dans un autre sillage. On laissa faire. Il descendit sur nous, que préférions l`ordinaire de notre étoffe de peine et le manque d`égards, et c`est ainsi, sans le vouloir, que nous fûmes affublés de bleu.

 

 

 

TEACH US TO CARE AND NOT TO CARE

 

 

Tradução de Adalberto de Oliveira Souza

 

 

A terra socada pela luz cadavérica da tormenta não emite nenhum lamento. A palavra morte foi afastada a fim de que a manhã pudesse recobrar todos os estágios prescritos do cérebro. Quanto ao humor que esse sobressalto não permite apreender, deixamos sem pressa avermelhar entre os vestígios do relâmpago.

Esta casa não queria se acostumar a permanecer entre a esperança e o pesar. Foi bem preciso encostá-la em um outro ancoradouro. Consentimos. Desceu sobre nós que preferíamos comumente nossa condição de compaixão e a falta de consideração, e foi assim, sem querer, que fomos trajados de azul.

 

 lua

 

 

 

Da arte de olhar pela janela

 

             Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Provavelmente, você tem quatro ou cinco janelas na sua casa. A menos que você viva debaixo da ponte, ou de um viaduto, cujo vão se abre para a direita e para a esquerda. E você costuma, de vez em quando, olhar lá fora, através das janelas. Faz isto, mas são muito poucos aqueles que sabem a arte de espiar pelas janelas. Tentarei ensiná-la.

Para olhar pela janela você precisa primeiramente correr a cortina, seja ela de pano grosso, ou dessas lâminas de plástico que sobem e descem, puxadas por um cordão. Estas últimas cortinas não são fáceis de ser manejadas, porque geralmente enguiçam. É hora então de você soltar um palavrão. Se a cortina for de filó, você consegue espiar lá fora, através dela. Mas antes, é claro, você tem de abrir a janela e, melhor ainda, descer a vidraça. Sem fazer isso, nada feito.

Bem, depois de alguma dificuldade, você conseguiu arredar a cortina, abrir a janela e descer a vidraça. Então, você está pronto para dar uma olhada lá fora.

Mas para que você quer olhar lá fora, se pode olhar aqui dentro mesmo, e principalmente dentro de você mesmo? Não discutamos isso, já que você optou por olhar lá fora, o que é um direito seu.

Para que você olha para fora da janela? Para ver se chove, se faz sol. E, sobretudo, para ver se vai passar na calçada aquela loira boa, de vestido curto, exibindo as coxas, ou com a bunda apertada nas calças jeans, muito justas. Está na hora de ela passar. E você disfarça, se sua mulher lhe pergunta: que é que você está fazendo aí, olhando pela janela? A resposta deve ser: estou olhando as árvores e a paisagem… Mas que paisagem, ó meu? Diante de você está é o paredão de um edifício de vinte pavimentos. Ou um bruto outdoor, que o impede até de ver o céu.

Bem, você viu a loiraça que passou lá embaixo. E até lhe acenou a mão, e ela sorriu. Um dia ainda te pego, prenda minha. Saia então da janela, antes que sua mulher se irrite.

Mas você também pode ser um janeleiro de quatro costados, que não tem o que fazer, e sua mulher já se conformou com esse hábito seu. Fica o dia inteiro, e parte da noite, debruçado na janela, olhando de um lado para outro. Já está até com calo nos cotovelos. Peça à sua mulher que faça uma almofadinha, para você apoiar os cotovelos. Ela faz, coitada. Em compensação, vá lhe dizendo tudo o que se passa na rua ou na calçada: “Seu Osório, hoje, está atrasado… Vem vindo aí a perua das pamonhas… O cachorro Faísca, de Dona Vitória, fugiu de casa e está mijando no poste… Tem um sujeito discutindo com outro, na esquina… Olha lá, a pobre da Dinorá está barriguda de novo… O farmacêutico Seu Messias, com a sua maleta, entrou na casa de seu Felipe… Vai ver que Dona Olga está gripada de novo e vai tomar uma injeção na bunda… O Padre Messias vem vindo lá de cima, com o guarda-chuva aberto… Parou diante da porta da viúva Biondina, fechou o guarda-chuva e entrou… Neste mato tem coelho…”

A cidade tem muita coisa para ver e contar. E há janeleiros e janeleiras aqui e ali, que trocam informações uns com outros.

Pode ser também que você more num apartamento. E, de um lado e outro, há outros edifícios de apartamentos. Compre um binóculo, para espiar aquela moça que se despe, ali em frente, com a janela aberta. Você vai descobrir que ela tem uma pinta preta, do lado direito da barriga. Mas você deve ter cuidado, e espiar apenas por uma fresta da janela, escondido atrás da cortina.

Quando eu digo olhar pela janela, digo também escutar dali os ruídos e rumores que vêm de fora. O ronco dos automóveis, o matraquear das solas dos sapatos nas calçadas, os gritos, a sirene do carro do hospital, as buzinadas e derrapadas dos carros, as músicas estrondosas que vêm de dentro deles… É muito complexa esta arte de espiar através das janelas. E note que você também está sendo espiado por outros janeleiros. Um desaforo.

A vida é muito engraçada. Há quem espie, quem seja espiado e comentado, quem ande de um lado para outro feito barata tonta, quem para, e quem vai. Somos todos espiões uns dos outros.

 

janela indiscreta

 

 

 

Conta-Gotas

 

 

                                                           CONTA-GOTAS

 

 

                                                           No silêncio da sala

                                                           os pingos da torneira que vaza

                                                           são uma voz que não cala

                                                           inundando o vazio da casa.

 

                                                           Clepsidra sonante

                                                           é a própria vida que se esvai

                                                           (sem que se dê conta)

                                                           a cada gota que desponta

                                                           oscila, resiste, insiste,

                                                           por fim cai tremifusa

                                                           como um lágrima na chuva…

gotas de chuva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pérolas aos poucos

 

 

pérolas aos poucos

 

 

 

                                               PÉROLAS AOS POUCOS

 

 José Miguel Wisnik

 

                                               Eu jogo pérolas aos poucos ao mar

                                               Eu quero ver as ondas se quebrar

                                               Eu jogo pérolas pro céu

                                                Pra quem pra você pra ninguém

                                               Que vão cair na lama de onde vêm

 

                                               Eu jogo ao fogo todo o meu sonhar

                                               E o cego amor entrego ao deus dará

                                               Solto nas notas da canção

                                               Aberta a qualquer coração

                                               Eu jogo pérolas ao céu e ao chão

 

                                               Grão de areia

                                               O sol se desfaz na concha escura

                                               Lua cheia

                                               O tempo se apura

                                               Maré cheia

                                               A doença traz a dor e a cura

                                               E semeia

                                               Grãos de resplendor

                                               Na loucura

 

                                               [ eu jogo ao fogo todo o meu sonhar

                                               eu quero ver o fogo se queimar

                                               e até no breu reconhecer

                                               a flor que o acaso nos dá

                                               eu jogo pérolas ao deus dará]

 

 

“Pérolas aos poucos” ( José Miguel Wisnik / Paulo Neves), com Ná Ozetti e André Mehmari (piano)