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Das vantagens de ser tio (a)

 

             Bell Gama

 Bell-Estrela-Binária

 

 

 

 

 

 

 Eu não lembro quando o conheci. Um dia, aquele moço alto, com voz grossa e cheio de alegria estava na casa da minha avó. Ela dizia que ele era meu tio. Minha mãe dizia que ele era seu irmão e eu, ainda sem saber direito como a minha mãe podia ser algo de alguém sem ser minha mãe, acabei gostando daquele cara. 

Diferente de pai, vó, o dono da padaria ou qualquer outro adulto que conhecia, toda vez que ele me via, me pegava no colo, jogava para o alto, sentava no chão e brincava comigo. Fazia carinho, me dava bons presentes e me levava para passear em um buggy vermelho. Aos 4 anos, ele me colocava ao lado da minha irmã mais velha no tampão do porta-malas do buggy e acelerava pelas ruas de Ribeirão Preto. Sabia que aquele rapaz devia ser muito especial para que a minha mãe deixasse que ele fizesse isso com a gente. (e eu adorava!)

Seus cabelos cacheados o denunciaram. Um dia, em tom de segredo, confidenciei para a mina irmã: “Já sei quem é o tio. Ele é o Sérgio Mallandro”. Mito no SBT na década de 80, Serginho era um dos nossos ídolos. E eu tinha certeza, ele estava infiltrado na casa da minha avó para nos fazer mais feliz. Não sei como, mas noutro dia ele descobriu que sabíamos sua identidade secreta e entrou no jogo. De repente, escondido de todos os adultos ele fazia “glu-glu”. Era nosso código, compartilhávamos um segredo.

Já mais velha, vi que meu tio não era Mallandro. Era Hilário. Sim, esse é seu nome, reflexo de sua alma que esbanja alegria por onde passa. Talvez ele não saiba, mas meu tio me ensinou a missão de ser tia, papel que ao contrário de muitas mulheres, exerço com orgulho. Acho que só sou uma boa tia para a Manuela porque tive um tio exemplar, daqueles que tudo pode, com quem a mãe deixa fazer tudo, que volta a ser criança com a gente até mesmo quando já sou adulta.

 

 Bell e Hilário

 

Esse texto é dedicado com todo amor do mundo ao meu Tio Hilário e minha Tia Ana (que foi me dada de presente pelo meu tio).

 

Bell Gama

janeiro/2013

 

 

O outro tecedor

 

Brenno Augusto Spinelli Martins

Brenno 2

 

 

 

 

 

 

 

                                          AMORTECEDOR

 

 

                                   Um caso sério,

                                   um caso de ternura, poesia…

                                   Um caso de fantasia, ilusão, sonho.

                                   Romântico.

                                   Antiquado.

                                   Romanticoantiquado.

                                   Confusão de gestos e culpas

                                   com fusão de palavras e atos,

                                   hiato que a razão não preenche:

                                   ― o coração, sim.

                                   Mas o coração é instável, aventureiro

                                   e ― poeta marginal ―

                                   confunde às vezes o que apenas é terno

                                   com o que não pode ser definitivamente eterno.

                                   E com a total liberdade desvairada

                                   que só os loucos incuráveis possuem

                                   (os loucos tem uma liberdade tão total e transcendente

                                   que são livres até mesmo de si mesmos, mas não sentem)

                                   o coração ousa usar de sua enfeitiçada insensatez

                                   para se tornar magicamente criativo.

                                   E cria o amor… do nada.

                                   E o amor, incorrigível nascituro aprendiz de tecelão,

                                   começa a trabalhar lá no fundo do coração.

                                   E sobe… e desce.

                                   Padece, mas tece.

                                   Tece a dor.

                                   O amor tece a dor.

                                   Amortecedor.

 

 

 

De mãos dadas

 

 

Selminha e Carpinejar, dois textos que se casam…

 

   Selma Barcellos

Selma 2 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Partilhei com aquele menino alumbramentos, espantos e descobertas da infância. Só ele podia entrar nas minhas brincadeiras. Até me atirar mamonas.

Volta e meia, sem que entendêssemos por quê, estávamos de mãos dadas, olhando fixamente um para o outro.

Um dia, desenhei a lápis o contorno de duas mãos no mármore do degrau da varanda e escrevi em letras microscópicas: “Vamos ficar sempre assim?”.

Claro que a mãe leu, que me fez apagar tudo, que me inquiriu sobre o “assim”, proibiu o menino de brincar lá em casa…

Mudou-se algum tempo depois. Adolescemos em bairros distantes.

Fui encontrá-lo anos mais tarde, ao buscar o filho na escola onde eu lecionava.  

_ Selma, lembra de mim? – perguntou inseguro, em meio à pequena multidão que se formava à saída das aulas. Assenti com um sorriso, trocamos breves palavras. 

Vontade de dizer o quanto aquele imenso quintal perdera a graça sem nós… Não consegui. 

Ontem, ao achar esta crônica dobradinha na caixa de delícias (cultivo a mania), revi o menino, nossas mãos, o jardim. E disse.

 

 

ANA PAULA 

 

Só a conheci quando tinha seis anos. Não sei o que anda fazendo. Nem sei como é. Lembro que era gordinha, charmosa, e muito educada.

Cabelos lisos, negros, com cheiro de goma misturado à flor de laranjeira.

Nossa brincadeira predileta consistia em remar numa banheira branca encalhada no pátio da creche Patinho Feio. Eu tapava um olho como pirata e a protegia dos canhões inimigos (as mamonas da gurizada). Desde ali, eu pisco quando falo a verdade. A verdade fica parecendo uma mentira, não tem jeito.

Será que trabalha num banco, casou, tem filhos? Será que lembra de mim?

Pensava que a namorava no jardim de infância. Porque segurava minha mão para entrar em aula, almoçar, escovar os dentes. Em fila indiana, do mais baixo para o mais alto. A sorte é que tínhamos a mesma altura e ficávamos próximos. Lado a lado. Quando segurava a minha mão, me considerava um eleito. Não percebia que todas as crianças eram obrigadas a segurar a mão do seu vizinho. Acreditava que segurava minha mão porque me desejava.

Um dia, você me falou que a gente deveria encontrar um tesouro para a nossa brincadeira. Para soar mais real. Não duvidei duas vezes: roubei colares de minha mãe, embrulhei em uma folha de ofício e entreguei o embrulho como pedido de casamento.

Escrevi um bilhete

“Para casar comigo, meu tesouro.”

Tenho comigo o papel, um escapulário amassado. Relendo, vejo que escrevi:

“Pra cazar com eu.”

Como há pares que pisam nos pés na hora de dançar, eu pisei nas palavras.

Natural para um menino desajeitado, tímido, aprendendo a escrever. Foi meu ato de maior coragem.

Mas sua mãe descobriu o presente, minha mãe descobriu o sumiço de suas joias. Foram devolvidas inclusive com a cartinha. Houve reunião na escola. Não mais a vi, retirada às pressas da turma pela convivência perigosa comigo.

Queria agradecê-la: nunca me arrependi, nunca deixei de me roubar para sustentar um amor. Melhorei apenas um pouco o português.

 

Beijo

Fabrício Carpinejar, o pirata

 

 

Condenação

 

 

 Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 3

 

 

 

 

 

 

 

 

                                   CONDENAÇÃO

 

 

                                                                                        Adalberto de Oliveira Souza

 

 

                                   Aqui estamos

                                   esquecidos

                                   como vocês,

                                   vulcões extintos.

 

                                   Há, entretanto,

                                   a surpresa diária

                                   tocando

                                   nossa carne amanhecida

                                   envolta

                                   em consistente concreto.

 

                                   Deveríamos talvez

                                   sorrir

                                   se pudéssemos

                                   entrar em erupção. 

 

vesúvio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sobre motoristas e passageiros

 

 

A homenagem da riberopretana Bell à sua São Paulo

 

                     Bell Gama

bell (bandeira do Brasil) 

 

 

 

 

 

 

 Era janeiro de 2004 e uma só frase rondava a minha cabeça “Non Ducor, Duco”. A inscrição da bandeira de São Paulo servira como mote para as comemorações dos 450 anos de São Paulo e eu era parte da festa. Na época eu trabalhava em uma produtora de eventos que promoveu um dos maiores desfiles que a cidade já viu. 450 carros antigos invadiram as ruas de São Paulo em um domingo de manhã para comemorar o aniversário. 100 carros saíram da zona sul, 100 da oeste, 100 da norte, 100 da leste, e os 50 mais raros estavam na Av. Paulista. A logística de conseguir uma sincronia para que todos andassem simultaneamente na avenida mais famosa da minha cidade (que escolhi para viver) durou meses de preparação. Junto com ela, um programa ao vivo. Foi meu primeiro programa ao vivo em rede nacional ao lado de queridos colegas de profissão. Com direito a entrevistar a Prefeita, ter ponto eletrônico no ouvido e ouvir a adrenalizante (existe essa palavra?)  frase “3, 2, 1… no ar… É com você, Bell!”. Os carros, que despertam a paixão e o ódio da maior cidade do país, foram o destaque da festa.

 

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Os automóveis sempre estiveram na minha vida. Aos 7 anos eu dizia que já sabia dirigir a boa e velha Parati branca do meu pai. Aos 13, peguei escondido seu Opala Diplomata e aprendi a dirigir. Aos 16, roubava o Fiat Palio da irmã e ía sozinha para a escola me sentindo a mais livre das criaturas. No dia 1 de dezembro de manhã, ao completar 18 anos, estava  finalmente tirando a minha Carteira de Habilitação. Aos 20, arrumei o emprego nesta produtora de eventos e televisão que só trabalhava com automóveis. Me descobri jornalista sendo “jornalista automotiva”. Dirigi muitos carros. Daqueles de mais de três dígitos e bem mais do que uma centena de cavalos de potência que sei que nunca mais estarei no volante. Dirigi no Japão, na Alemanha, visitei a fábrica da Maserati e vi carros sendo produzidos manualmente. Escrevi para revistas especializadas, participei de eventos de lançamentos e até hoje sou convidada pela indústria para fazer roteiros para os automóveis. Enfim, sempre fui considerada uma menina que “manja” de carros.
 
Há mais de 2 anos tomei uma decisão radical. Vendi o meu carro. Comprei um apartamento, precisava de grana para a entrada. Na época todo mundo se assustou: Como você vai viver sem carro? Eu também não sabia. Aos poucos, encontrei novos caminhos. Vi que não ter carro em São Paulo me deixa ainda mais livre. Com o tempo, a paixão por dirigir se tornou uma dor de cabeça. Multas, IPVA, Renovação de Carteira, Revisões, Lei Seca, custos, custos, custos… Passei a ser uma má motorista. E não queria sujar minha ficha corrida. Perdi a carta e a paciência. Hoje, não tenho carro nem garagem.
 
As pessoas ainda se assustam com a minha decisão: Como você consegue viver sem carro? Simples: moro perto do metrô. Pego ônibus, táxi, compartilho carro e sou carona preferencial  dos meus amigos. Passei a ver a cidade com os olhos de passageira, dedicando cada momento a uma nova descoberta.  Hoje, ao cruzar a cidade pelo subterrâneo do metrô (sem fone de ouvido ou livro para ler) senti aquele prazer de ser anônima e ter um olhar turista… Reparei na moça chorando, no casal se beijando, na mãe dando bronca no filho, no rapaz compenetrado que lia uma apostila. Passei por várias estações notando suas diferentes personalidades. Eu sou linha vermelha com muito orgulho! Fico na estação Marechal Deodoro, mas o fim da minha linha é no meu time de coração “Corinthians/Itaquera”. Há quem odeie essa linha pois ela leva para a periferia da Zona Leste (Lost). Eu amo. A linha vermelha é a cara São Paulo. E por aqui tem esse bairrismo mesmo… Paulistano que é paulistano sabe a diferença da Linha Verde para a Azul.  Quando lançaram a Linha Amarela fiz questão de ser uma das primeiras a andar como  mesmo espírito que a gente leva uma criança para andar pela primeira vez no metrô. E não há estação tão bonita como a Sumaré.
 
 
metro marechal
 
 
Assim como a cidade, poucos metrôs ainda são conduzidos. Muitos se auto-conduzem. Assim como eu gosto de ser. São Paulo, que completa 459 anos nesta semana, ainda tem uma injustiça: todo mundo deveria ter um metrô para chamar de seu. Para assim poder conduzir o seu olhar para onde bem entender: para as ruas, no papel de motorista ou para a paisagem.
 
metrosp
 
 
 
Bell Gama/janeiro 2013
 
 
 
 

Hoje eu acordei…

 

O dia em que Selminha acordou cadê…

 

   Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

 

dulcora

 

 

Não sei se foi o jardim de domingo dos vizinhos que quando tem pouca gente (de três gerações) tem 30 e ontem apareceram com um livro do Loyola com lembranças que se você reconhecesse como suas, você seria  jovem, médio ou dinossauro; se foi homenagear Adoniran Barbosa lá no blog da filha Maria Helena; se foi Melody Gardot mandando muito bem nessa musiquinha de dançar em frente ao espelho; se os galhos assim de maracujá do outro vizinho despencando no meu quintal; se o zizi das cigarras antes de levantar para a malhação… só sei que hoje eu acordei completamente cadê.

Cadê as tanajuras, os tatuís, as joaninhas, o anil clareando as roupas no varal, a coleção perfumada de figurinhas do sabonete Eucalol, os decalques de flores de enfeitar papel almaço nas provas “nota 10, com louvor” sobre os afluentes do Amazonas, o sinal do recreio, a sapatilha cor de rosa do ballet, as matinês de Tom & Jerry com a melhor amiga da infância? E o Biotônico Fontoura que eu lia biotonico porque ele deixava o Tonico duas vezes mais forte?

Cadê as domingueiras do clube, o baile de debutantes, eu dançando “Lover”, a coreografia do hully-gully, Trini Lopez, “Oh, Carol”, o chá-chá-chá e o chá de cadeira sem ninguém tirando a gente para dançar, o uniforme de normalista com estrelinhas na lapela, o casaco de banlon, o cheirinho de Pinho Silvestre dos galãs?

E lá ia eu tão romanticamente saudosa nesse delicioso exercício de arqueologia afetiva, quando me deparo com uma reportagem intitulada “Em busca da larica perdida”, onde a jovem rapaziada dá depoimentos sobre seus inesquecíveis lanches de infância. O mais votado? Cigarrinho Pan. Que isso, gente?

Cadê meu drops Dulcora, embrulhadinho no celofane, um de cada cor? Assim, exatamente como estão guardadas as lembranças  en mi corazón de melón, melón, melón…

 

 

Ora direis, um presente para o blog…

 

 

 

Adalberto 2 (2)

Adalberto de Oliveira Souza

 

 

 

Adalberto de Oliveira Souza, poeta, escritor, professor, mestre e doutor de línguas neo-latinas, alma peregrina de artista e uma porção de outras coisas mais, sobretudo o grande e querido amigo meu e do Brenno desde a prisca e saudosa era do curso Clássico no Otoniel Mota, que 25 anos atrás foi viver e lecionar em Maringá, reapareceu de repente, não mais do que de repente no Estrela Binária. E mandou de presente este poema que fez especialmente para o blog.

Vai se tornar colaborador permanente e há de merecer uma apresentação à altura que, chegado de viagem e ainda meio fora de órbita, não consegui escrever agora.

E não via a hora de publicar o poema.

Não, não vá  embora, Adalberto.

A casa é sua.

Possua-a…

 

 

                       Homenagem à Estrela Binária

 

 

                                    Ora direis,

                                    sob tantas estrelas

                                    luzindo esparsamente,

                                    limpidamente significando

                                    e nem tanto e nem tento explicar.

 

                                    Ora ouvireis,

                                    clareando ofuscantes,

                                    vagas e sensivelmente,

                                    do tempo e da distância,

                                    as massas estelares,

                                    as estrelas violentas,

                                    as estrelas cadentes,

                                    os eclipses vários

                                    preocupantes.

 

                                    Hora a hora,

                                    só indo embora,

                                    sempre, sempre.

 

 

 

Véspera

 

 

Brenno Augusto Spinelli Martins

 Brenno (facebook)

 

 

 

 

 

 

 

                                   Enquanto

                                   o encanto

                                   é por enquanto

                                   me apronto

                                   para a festa.

 

                                   Calço de novo

                                   o velho sapato velho

                                   nos pés do talvez.

 

sapatos velhos

 

 

 

 

De ladinho

 

 

O jeitinho da Selminha para passar no exame de motorista… 

 

 

       Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Adoro ler sobre engenhocas geniais.

Dentre os robôs, por exemplo, já existem modelitos que trocam piadas com pessoas solitárias – não se importando em ouvir sempre as mesmas histórias dos idosos – , encontram óculos perdidos, malas desacompanhadas em aeroportos, colocam pratos na máquina de lavar louça, abrem a geladeira e trazem mimos…

Mas nenhuma engenhoca recente me trouxe mais alegria do que o automóvel capaz de estacionar de lado. Para tudoooo. Vocês não estão entendendo. Sou péssima de vaga, com direito a linguinha pra fora, absoluta expressão limítrofe, toda retorcida, e devidamente xingada pelos estressadinhos, claro.

É trauma.  Bloqueio sinistro. Quando jovem, levei bomba 3 (três!) vezes no exame de motorista. Prova de baliza. Numa das vezes, sentindo que o carro empacara, falei para o examinador:  _ Tem uma coisa dura atrás… _ É o meio-fio, minha filha, você está subindo nele. Tóin.

E lá ia eu de volta pra autoescola.

O drama só foi se resolver na quarta tentativa. Me vendo arrasada, o velho Said se encheu de brios e me acompanhou ao local da prova carregando um embrulhinho: _  Agora filhínia vai bassar.

Passei.

Ninguém resistia às esfirras dele.