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Cidade Cinza

 

                Bell Gama

bell gama

 

 

 

 

 

 

 

Para uma menina que estava acostumada a pegar apenas o ônibus Jardim Irajá na esquina de casa, ir para o inglês no centro de Ribeirão Preto e voltar, São Paulo tinha tudo para ser assustadora.

Quando se mora no interior pouco se assusta. Você conhece as pessoas, a cidade, que horas o vizinho chega em casa, quem é a melhor doceira da cidade, onde comprar o uniforme da escola e quem traz coisas do Paraguai.

Cheguei em São Paulo em 1998. Eu não achava, mas era uma adolescente. São Paulo me fez mulher. Aqui trabalho, me apaixonei, desapaixonei. Aqui comprei minha casa e fiz meus amigos. Daqui fui para o mundo e voltei e vou e volto ainda repetidas vezes.

Hoje acordei às 8 horas da manhã para atravessar 11 quilômetros em uma hora. Tempo até que bom para uma sexta-feira. Antes de pegar a alça para a Avenida 23 de maio, me deparei mais uma vez com o mural dos Gêmeos, Nina e Nunca. Tirei uma foto, postei no Instagram.

A imagem do mural que vi tantas vezes ficou rondando a minha cabeça e me fez alugar o filme “Cidade Cinza” que conta a história de quando o mural foi apagado em 2008. Escrevo esse texto ainda com os créditos do filme subindo em minha tela. Ele conta brilhantemente a luta da arte contra o concreto.

Quando me mudei para São Paulo recebi muitas recomendações. Diziam-me que eu seria assaltada, que não poderia andar sozinha, que pegar transporte público era impossível e que criar uma família em São Paulo era uma coisa de louco.

Mas no meio de tanta contraindicação me encontrei. Todos os dias, olho para a minha janela que dá de frente para tantas outras janelinhas e vejo vida. Ouço crianças rindo, cachorros latindo, o cara do sorvete que passa assobiando todo dia às 5 horas, tem o sino da igreja e lá no fundo ouço um barulho da televisão de alguém. Não estou sozinha.

Não sei se eu mudei ou se foi a cidade. Não sei se São Paulo está mais corajosa ou eu. Mas nos últimos tempos, desde que decidi vender meu carro e comprar um CEP, assumi São Paulo para mim. Participei de manifestações, vou a eventos gratuitos, promovo junto com amigos um bloco de carnaval, as feiras de rua viraram um dos meus programas preferidos e privilegio todos os shows de rua possíveis.

Engoli o medo e parei de chamar o meu vizinho, o “Minhocão” de “Faixa de Gaza”. Calcei os tênis e o tomei como minha pista de corrida. Todas as noites, divido o espaço com alguns mendigos, mas também com outros tantos paulistanos que encaram o centrão às 9h30 da noite.

Em algum momento decidi: ou São Paulo é minha ou é do medo.

Ao assistir “Cidade Cinza”, percebi que os grafiteiros fazem o mesmo há muito mais tempo. Mesmo tendo sua obra de arte de mais de 700 m2 e tantas outras apagadas por uma horrorosa tinta cinza, eles continuam, refazem, repintam e marcam permanentemente essa cidade que faz de tudo para ser bonita.

Fiquei triste ao ver a politicagem em torno do mural. Enquanto o Sr. Kassab pousava para fotos e um bispo — que não sei por que estava no filme — “benzia” o mural e tantos outros secretários faziam cena, os artistas ficaram ao fundo.

Na minha São Paulo eles estão na frente, protagonistas, e agradeço todos os dias por enfeitarem meu caminho.

 

grafite Bell

 

“São Paulo, São Paulo”, com o Premê (Premeditando o Breque)

 

 

 

 

Rectificar é preciso

 

       

         Selma Barcellos

 Selma-no-Jardim-de-Luxumburgp

 

 

 

 

 

 

 

 

RECTIFICAR É PRECISO

 

Carta do leitor Abel Passos, da cidade do Porto, enviada para o jornal português “Diário de Notícias”:

 

Os Hiper e a língua portuguesa 

“Não raras vezes as grandes superfícies, que basicamente comercializam produtos alimentares, surpreendem com erros de português nos escaparates […]. Falo concretamente de uma loja instalada num centro comercial da Senhora da Hora […]. Nessa loja, em duas palavras há três erros ortográficos: “brôa”, em vez de “broa” e “broculo”, em vez de “brócolo”. E nem atendem aos reparos, solicitando a rectificação, formalizados, há cerca de dois meses, em impressos. Em vão, até hoje!”

 

Que delícia… É isso aí, leitor. Carinho com o idioma. Gostamos nós e seu conterrâneo, o imenso Pessoa de “minha pátria é a língua portuguesa.”

Deixe estar, Sr. Abel, que se os problemas insolúveis se resumissem a chapeuzinhos e grampinhos roubados – sobretudo após a controversa reforma ortográfica -,  nossas pátrias estariam salvas.

Vale um toque? Se o senhor, atento observador das normas da língua, cogitar ancorar sua caravela neste lado do oceano em que me encontro, mantenha distância dos improvisos presidenciais, falas e blogues de candidatos, livros de senadores, cartilhas didáticas distribuídas, exames nacionais… Ou considere a possibilidade de passar a estada enviando cartas. Está feia a coisa, caro Abel. Como apanha a última flor do Lácio…

E apareça, se lhe aprouver. A blogueira adora uma prosa lusa. Bastante trazer um vinho do seu Porto. Eu entro com as broas de Minas.

 

glúten

 

 “Orora Analfabeta” (Gordurinha / Nascimento Gomes) com Jards Macalé

 

 

 

Jogo

 

       Adalberto de Oliveira Souza

 Adalberto

 

 

 

 

 

 

                                                              JOGO

 

 

                                               Cada coisa no seu lugar,

                                               cada um no seu quadrado,

                                               Preparação constante

                                               de um castelo de paixões,

                                               de restrições,

                                               de reconsiderações,

                                               para um eterno despertar

                                               Ou para um partir eterno.

 

                                               Cada gesto no seu momento

                                               com significações evidentes,

                                               alvíssaras de esperanças,

                                               para marcar o momento

                                               e usufruí-lo.

 

                                                Nem tudo se assemelha ao que

                                                realmente é.

                                                Nada é tão enganoso

                                                quanto a aparência.

                                                No entanto, às vezes,

                                                se acerta.

 

xadrez

 

 

 

Uma canastra só de curingas

 

          Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

― O ilustre e ilustrado amigo pode me dar uma explicação?

― Depende. Se é para explicar o que é a vida, não posso. Pergunte a um morto.

― Mas os mortos não falam.

― Falam sim. Falam o hungarês, as línguas mortas, como o latim, e algumas outras.

― Então eu devo aprender hungarês para falar com um o morto?

― Se ele só falar o hungarês, é claro. Mas se ele não fala hungarês, mas só alemão, o senhor deve aprender o alemão.

― E como é que eu vou saber a língua que um morto fala, para falar com ele?

― Vá aprendendo as línguas.

― Ora, são centenas de línguas…

― São. Mas quando o senhor souber todas elas nem precisa mais falar com morto nenhum, porque saberá também o que é a vida.

― Quer dizer que as línguas, todas as línguas sabidas é que me explicariam o que é a vida?

― Já lhe disse quem quando o senhor souber todas elas não precisará mais saber o que é a vida.

― Por quê?

― Porque o senhor também já estará morto. E os mortos não precisam mais saber o que é a vida.

― Como é que o senhor sabe?

― Também já lhe disse que não sei.

― O senhor é muito radical. Não pode ao menos me dar um palpite?

― Palpite para o jogo-do-bicho? Isso, qualquer um pode ter.

― Não, um palpite que acerte no milhar.

― Então o senhor não quer saber o que é a vida, mas quer é ficar rico. E, se ficar rico, não precisará mais saber o que é a vida.

― Pelo que me diz, a vida é um jogo…

― Um jogo, mas também é preciso saber blefar. Vá blefando que um dia o senhor arrebenta a banca.

― Mas para jogar e blefar é preciso que haja outro jogador, ou outros jogadores.

― Sim, precisa. A vida são os outros. Nós mesmos, sozinhos, não somos nada. Os outros é que dão as cartas. E, olhe, há cartas marcadas, e fraude.

― O senhor é muito pessimista.

― Até que não sou tanto assim. Continuo jogando. Um dia, talvez, eu faça uma canastra só de curingas.

 

 

“Acertei no milhar”  (Wilson Batista / Geraldo Pereira), com Moreira da Silva

 [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=2eOpqjyjX6I&hd=1[/youtube]

 

 

 

A ex-colinha

 

         Selma Barcellos

Selma-no-Jardim-de-Luxumburgp

 

 

 

 

 

 

 

 

Queridos dinos, como é que vocês colavam? Escrevendo as fórmulas na palma da mão, na borracha, na carteira, em tirinhas de papel guardadas no estojo? Pescoçando a prova do colega? Observando os movimentos codificados do gênio da turma que, coitado, parecia sofrer de espasmos nervosos?

Quem nunca deu uma coladinha… Gerações. Há pouco, arrumando relíquias didáticas na estante, caíram “lembretes” do livro de Química do filho… Cheguei a ouvir sua voz adolescente, belo dia, depois de copiar trocentas vezes uma fórmula na  tentativa de reduzir a letra: “Já decorei essa porrrrcaria!”.

Mas o fato é que a cola perdeu, digamos, a “inocência” primal… Ficou high-tech, sofisticou-se e passou a representar má-fé, picaretagem, trama, golpe. Cultura nefasta a ser realmente combatida. Imaginem que mascar chiclete pode disfarçar a conversa em minicelular com um cúmplice fora da sala, uma caneta pode fotografar a tela da prova e por aí vai.

Li que a University of Central Florida, por exemplo, já declarou guerra  à “evolução da espécie”. Da sala de monitoramento (aqui), um fiscal acompanha os gestos do aluno ao computador, direciona o zoom da câmera para o indivíduo e grava o “crime” em CD. Papel de rascunho? Com data estampada e favor devolver à saída.

Segundo o reitor, em 64 mil exames houve apenas 14 casos suspeitos. Sua Magnificência só não contava com a figuraça que, na contramão da tecnologia, supertatuou o braço e “inseriu informações” em sua body art.

É flórida… Ô raça.

 

 

 

 

 

Regra

 

     

        Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 

 

 

 

 

 

 

 

                                                 REGRA

 

 

                                                 Indisponho nos meus sentidos,

                                                 uma sinistra luz opaca.

 

                                                 Multicor me faço,

                                                 Desfaleço em pedaços.

                                                 Recobro o ar,

                                                 Poluo-me em alabastro.

                                                 Digo adeus

                                                 e permaneço.

 

Foto:22.04.2002

 

 

 

Golpe e Ditadura

 

             Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

 

No próximo dia 31 de março estaremos meio século distantes do golpe que derrubou o governo do presidente João Goulart. Eu tinha 25 anos, morava em São Paulo e acabara de ingressar na universidade. Era membro do Partido Comunista Brasileiro, a mais importante organização de esquerda da época, que atuava na clandestinidade e era comandada pelo revolucionário histórico Luis Carlos Prestes.

O golpe inaugurou o período da ditadura militar, durante a qual as eleições foram abolidas e cinco generais se revezaram na presidência da República como ditadores. O agrupamento político de esquerda que hoje se encontra à frente dos destinos da Nação, liderado pelo PT, certamente produzirá um bom volume de atos e discursos para maldizer a data.

Será lembrado que o presidente João Goulart, eleito em eleição livre, foi deposto por um golpe de direita liderado pelos militares, porque pretendia fazer grandes reformas em benefício do povo e do País. Será dito que, uma vez expulso do governo o presidente legitimamente eleito, os militares instalaram uma ditadura que durou mais de 20 anos e que, entre outras coisas más, aprisionou lideranças populares, cassou mandatos de parlamentares e outros políticos, acabou com a eleição para a escolha do presidente da República e governadores de estados, interveio em sindicatos de trabalhadores, instituiu a censura à imprensa e às produções culturais, assim como perseguiu, torturou, matou e fez desaparecer pessoas que se dispuseram a lutar pela democracia.

Os mártires da ditadura serão lembrados e reverenciados. Os ditadores e seus seguidores serão amaldiçoados. A verdade histórica, porém, será relembrada e contada na porção e proporção dos interesses daqueles que hoje estão no poder. Isto significa que cederá generosos espaços ao engano e à propaganda. Por exemplo: todos os que sofreram e morreram por obra da ditadura terão sofrido e morrido em nome da sagrada causa da democracia, versão que não tem a evidência dos fatos.

Alguns pedaços dos acontecimentos serão naturalmente silenciados, quando não deturpados. Como governava o País o presidente João Goulart, especialmente no seu último ano de governo? Qual era o agrupamento político mais poderoso no âmbito das forças esquerdistas que apoiavam o presidente? Como se posicionavam as forças que apoiavam Goulart diante da divisão mundial entre o bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco dos países ditos socialistas, governados pelos comunistas e liderados pela então União Soviética? Por que as forças de esquerda e o governo perderam apoio popular para a direita? Após o golpe militar, como se comportaram as forças mais radicais da esquerda? Na ditadura, as primeiras ações armadas contra os militares ocorreram antes ou depois do Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968? Qual era a ideologia dos grupos de esquerda que organizaram a luta armada contra a ditadura? Em que paises foram treinadas as lideranças das forças guerrilheiras que promoveram a luta armada?

As respostas da verdade histórica a essas perguntas não são cômodas para a esquerda bolivariana que hoje governa o País. Compreende-se que ela não se disponha a respondê-las. Ou pelo menos não se disponha a respondê-las com a sustentação dos fatos.

Em 1964, tanto as forças que apoiavam o governo como as forças que lhe faziam oposição não exibiam maior fervor pela democracia. Esquerda e direita travavam uma guerra de vida ou morte para ver quem eliminava o adversário, não para estabelecer um regime verdadeiramente democrático. Venceu a direita.

O partido em que eu militava, o PCB, o grande aliado de Goulart, tinha, como sempre teve, por objetivo chegar à ditadura do proletariado, não à democracia. A democracia era aceitável temporariamente, como meio, não como fim.

 

 

 

De ternuras

 

 

Selma no Jardim de Luxemburgo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para Sinatra, uma das mais ternas canções jamais escritas. ‘Não há na letra um “I love you” sequer, mas o amor está todo lá’, comentou certa vez.

Adoro “Little Green Apples”. Música de 1968. Com ela, as descobertas, os primeiros versos… Verdes como as maçãs.

 

 

                                                 POEMILHA

 

                                                 Garrafas ao mar

                                                 Bilhetes em quilhas

                                                 e árvores, a estilete

 

                                                 Mapas, luas, estrelas

                                                 signos, mitos, sons

                                                 ideogramas, ritos

 

                                                 Em vão.

 

                                                 Apenas o eco e seus iguais

                                                 respondem ao meu coração.

 

                                                 Decifra-o se és capaz.

 

 

Do bauzinho da garota… Ousada, não? Drummond tremeu.

 

Uma das versões de “Little…” , na voz personalíssima de B.J. Thomas.

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=avXntFPN0vc[/youtube]

 

 

 

Metamorfoses

 

      Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

                                               METAMORFORSES

 

 

                                               Muito escapa.

                                               Muito é retido.

 

                                               Pouco se livra.

                                               Muito é restrito.

 

                                               Muito subtrai-se.

                                               Pouco é contido.

 

                                               Pouco é detido.

                                               Nada é refreado.

 

                                               Tudo se esvai,

                                               transformado

 

                                               em novas formas

                                               informes.

 

O impossível (Maria Martins)

“O impossível” (Maria Martins)

 

 

LEMBRETE

Hoje, no Centro Cultural São Paulo

Rua Vergueiro, 1000, Sala Adoniran Barbosa, 19h30

Lançamento do livro de poemas “Corrosão”

 

 

 

O vira-lata

 

           Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Havia cometido muitas tolices e acertado em algumas coisas, e posto lado a lado tudo o que fizera, estava empatado. Os dois pratos da balança equilibravam-se. Não fedia, nem cheirava. 

Supunha que, nos anos que lhe restavam, devia fazer um grande gesto, uma façanha que melhorasse a vida de todos, que causasse admiração, para lhe dizerem: “Você é dos bons”.

Imaginava uma coisa ou outra, um empreendimento glorioso, uma obra magnífica, mas, mal começava a mexer-se, dava em nada. “Você está maluco”, opinavam, “deixe disso, se não quiser entrar numa enrascada e dar com os burros n´água”.

Ele não iria mudar o mundo, o mundo seria sempre como é, um desastre. Ninguém mais fazia milagres, nem mesmo os santos. Nem ele mesmo podia mudar-se, ser outro. O ramerrão dos dias, um depois do outro. Já não estava na idade das grandes paixões, de um amor violento. Todos estavam acomodados, e resignavam-se. Se ao menos inventasse um remédio contra a melancolia, contra a tristeza… Uma poção. O sujeito beberia umas colheradas dela e era um deslumbramento. Mas até nas farmácias muitas drogas ou remédios haviam sido recolhidos, não se podia comprar muitos deles sem receita médica. Se lia as bulas, os efeitos colaterais deles eram assustadores. “Consulte sempre um advogado”, recomendava a mensagem, no vidro traseiro dos carros. Os advogados, os juizes, os oficiais de gabinete, os prefeitos, os governadores, todos estavam perplexos. Já não falava dos deputados, dos senadores, uma corja.

Uma tarde, um cachorro vira-lata, numa esquina, veio cheirar-lhe a barra das calças, e acompanhou-o até a sua casa. Abriu o portão, e o cachorro, humilde, ficou olhando para ele, os olhos súplices, e abanando o rabo. Manteve o portão aberto e disse para o cachorro: “Entre”. Ele entrou. Foi botar-lhe um pouco de água fresca, numa vasilha e, noutra, trouxe-lhe um pouco de comida. O cachorro comeu e bebeu.

O vira-lata não mais o deixou, e este foi o gesto que o redimiu.

 

vira-lata