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Suarabácti

 

         Annibal Augusto Gama

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Não sei onde ouvi ou li esta palavra, nem tinha à mão, na hora, um dicionário, mas ela ficou me martelando na cabeça. Parecia o nome de alguma doença inconfessável. Até que dei com o Prof. Lopes, um sábio, na porta da Farmácia Modelo, e lhe perguntei o que era ou queria dizer o tal de suarabácti,

O professor olhou para o céu, e depois me bateu a mão no ombro:

─ Cáspite! Faz mais de vinte anos que não ouço ninguém falar em suarabácti! Onde é que você encontrou a palavra?

Provavelmente, os antibióticos haviam acabado com o suarabácti, como acabaram com a gonorréia.

Mas não era nada do que eu supunha, e o professor explicou:

─ Suarabácti, meu caro amigo, é uma alteração fonética que consiste na intercalação de uma vogal para desmanchar um grupo consonantal. Diz-se também “anaptixe”. Por exemplo; “adevogado”, por advogado, “peneu”, por pneu, “taramela”, por tramela.

Ora, ora…

Agradeci ao professor e fui saindo. E ele permaneceu rindo, na porta da farmácia.

Fui para o Bar e Bilhar do Nilo, entrei, e experimentei no Elesbão, que é um cretino:

─ Você não tem vergonha na cara, seu pervertido? Fazer suarabácti no bordel da Ambrosina…

Todos olharam reprovativamente para o Elesbão, e ele pegou o taco, ameaçadoramente.

─ Repita o que está dizendo que lhe parto a cara!

─ Pois pergunte antes ao Professor Lopes, foi ele quem me disse, na porta da Farmácia Modelo.

Ele estava com as mangas da camisa arregaçadas, e eu tirei o paletó.

─ Bom será que não lhe caia a língua, depois do suarabácti. Se eu fosse você, ia logo tomar uma dose cavalar de antibiótico, porque a coisa é grave e contagiosa. E não me encoste, antes de se tratar.

Todos se afastaram do Elesbão, e ele empalideceu.

─ Vou já falar com o Doutor Magalhães, e depois volto para lhe quebrar a cara. 

─ Não é preciso, seu bestalhão, porque eu já tenho o antibiótico no bolso. Suarabácti é meter uma vogal num grupo consonantal, para desfazê-lo. “Adevogado”, por advogado, “peneu”, por pneu. 

Todos caíram na gargalhada. Ainda assim, o Elesbão correu atrás de mim, com o taco na mão, até a porta do bar.

─ Engraçadinho! Moleque! Vá gozar a mãe!

Quando ele se acalmou, retornei ao bar e perguntei ao pessoal:

─ Como é, gente, vamos ou não vamos jogar uma partida de sinuca?

De noite, na Ambrosina, sugeri à Loreta:

─ Vamos fazer um suarabácti? 

Ela se ergueu da cadeira, os olhos fuzilando.

─ Quem é que você pensa que eu sou? Seu descarado, seu tarado! Não me encoste a mão, e saia já daqui!

Foi um custo convencê-la que ela mesma praticava o suarabácti todos os dias.

A coisa se espalhou, e todos vinham perguntar-me que estória era aquela do suarabácti. Mas alguns ainda continuam duvidando. 

O Prof. Lopes me disse:

─ Pelo menos, você divulgou o suarabácti. Mas tenha cuidado, não exagere, não deturpe a língua, que é preciosa.

 

suarábacti

 

 

 

Sic Transit Gloria Mundi

 

          Annibal Augusto Gama

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 Suponhamos que alguém pretenda escrever (ou dizer), que a gloria é vã. E alinha as seguintes frases que, substancialmente, significam a mesma coisa:

 

                                    A glória é uma palavra vã.

 

                                    A glória é uma vã palavra.

 

                                    Glória: vã palavra.

 

                                    A Glória é uma vã palavra.

 

                                    A glória nada é.

 

                                    A glória é nada.

 

Destas seis frases, só uma deve ser exata, no seu sentido e estilisticamente, para um bom escritor. E soar mais bem para um leitor sensível.

Qual delas seria?

Isto, os professores não explicam nas suas aulas de língua portuguesa, ou só raros deles explicam. E é uma questão de bom gosto, de sensibilidade.

Vamos tentar fazer a escolha certa e justificá-la.

 Em primeiro lugar, a primeira frase (“A glória é uma palavra vã”) é incomparavelmente inferior à segunda: “A glória é uma vã palavra”.

 Por quê?

 Porque uma palavra vã (da primeira frase) apresenta um encontro vocálico desagradável para um ouvido fino: vra-vã. E a antecipação do adjetivo ao substantivo da segunda frase elimina este encontro vocálico enjoativo.

 Todavia, a terceira frase, para aqueles que se prezam de ser sóbrios de palavras, talvez seja a melhor: Glória: vã palavra. Mais ainda: nela não se achando o artigo definido “a”, generaliza, e abrange toda espécie de glória.

 Na quarta frase (“A Glória é uma vã palavra”), vê-se que se escreveu com maiúscula o substantivo Glória. Ele foi personalizado e pode referir-se não ao substantivo abstrato “glória”, mas a uma moça ou a uma mulher chamada Glória. O que não é o caso, ou é outro caso.

Enquanto isso, a quinta e a sexta frases não são muito expressivas. 

Um escritor vulgar poderia ainda optar por uma frase grosseira: A glória não enche barriga.

Acho que a escolha está feita: a melhor, entre as seis frases é: A glória é uma vã palavra. Ou, sucintamente: Glória: vã palavra.

 Carlos Drummond de Andrade, em seu livrinho póstumo, O Avesso das Coisas, escreve:

 “A glória é o alimento que se dá a quem já não pode saboreá-lo”.

 Não é uma frase muito verdadeira. Porque ele mesmo, em vida e moço, saboreou a glória que merecia.

 Já Valéry dizia, com um dar de ombros, ou com irritação:

 “Je m´en fous de la gloire”.

 Que não traduzo, para não escandalizar.

 

sic-transit-gloria-mundi-

 

 

O morto e o vivo

 

          Annibal Augusto Gama

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Quando foi buscar na paróquia a sua certidão de batismo, para casar-se na Igreja, ficou surpreso. Era irmão gêmeo, e o seu irmão havia falecido. Constava, porém, nos registros paroquiais, que o morto era ele, e não o outro. O mesmo aconteceu no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais. Diante de tal problema, devia procurar uma retificação daqueles registros. Isto demandava tempo, advogado, e o mais. 

Sua noiva achou que ele estava era a protelar o casamento. O advogado consultado lhe disse:

— O melhor seria você continuar morto. Morto não tem responsabilidade. Pode fazer o que quiser, e não será punido. Além disso, você pode amigar, ou amancebar-se, que é melhor do que casar. A Constituição atual equipara a amigação ao casamento.

A noiva, porém, repeliu tal sugestão. Queria casar-se de papel passado e vestida de noiva.

Intervieram então o futuro sogro e a futura sogra.

— Olhe aqui — exigiram — você trate de honrar o seu compromisso. Senão, rua! 

As ruas não admitem defuntos passeando por elas. Querem-nos enterrados no cemitério.

A prova de que se está vivo, dá-a os médicos. Mas estes, muitas vezes, se enganam. Que é estar vivo? Há tão variados modos de viver que até hoje não se deu uma explicação conveniente do que é viver.

Seus pais também não puderam dar solução ao caso. Disseram-lhe: 

— Você e o seu irmão eram tão parecidos que às vezes um mamava duas vezes e o outro ficava sem mamar. 

Ele lembrava-se de que quem ficava sem mamar era ele, porque chorava muito, a despeito de se propalar que quem não chora não mama. 

Pareceu-lhe ainda que seus pais preferiam o outro, que não mais lhes dava despesa.

 O noivado rompeu-se.

E como oficialmente continuava morto, foi vivendo sem compromisso nenhum.

A lição é esta.

Viva sem compromissos, sem horários nem honorários. Vá para onde quiser, ou fique, que tudo dá na mesma.

Afinal, de um modo ou de outro, você morre.

O caso dele, contudo, era singular: se morresse, não havia como passar-lhe o atestado de óbito, porque já morrera muito antes.

Ora, ora, viver ou morrer não é a mesma coisa?

Vivos ou mortos, somos todos defuntos. E defunto não tuge nem muge.

defunto 

 

 

 

O vendedor de papagaios

 

 

      Annibal Augusto Gama

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Os cofres da Prefeitura Municipal estavam vazios, porque os contribuintes não recolhiam os impostos. O dinheiro arrecadado mal dava para pagar o funcionalismo. O Prefeito convocou os fiscais, esbravejou, e ordenou-lhes que tratassem de cobrar os imposto de todo o mundo.

O vendedor de papagaios achava-se na Avenida, vendendo os seus: “Comprem o papagaio falador! Compre este que fala tudo, e é barato!” Os papagaios, no poleiro, mantinham-se calados e arrepiados. E veio vindo, sorrateiramente, um fiscal da Prefeitura, que agarrou o homem. “Cadê o alvará? Cadê o comprovante de pagamento de imposto?” O homem se encolheu, diante dos papagaios assustados. “Que alvará? Que imposto?” Mas, seguro pela manga da camisa, foi levado aos trancos para diante do Prefeito. “Aqui está um devedor relapso!” O Prefeito Municipal olhou o vendedor de papagaios, xingou e protestou: “É por causa de gente como você que a cidade não prospera! Gente que não paga imposto e não cumpre as suas obrigações!”

E mandou buscar o regulamento de impostos, que foi aberto sobre a sua mesa. Correu a ponta do dedão sobre a lista, folha por folha, e não achou nenhum imposto sobre venda de papagaios. Uma falha, uma omissão imperdoável… Como fazer?

Vai então, teve uma inspiração e bateu uma palmada na cabeça:

— Verdura não é verde? Alface, almeirão… Papagaio também não é verde? Cobre-se do sujeito o imposto sobre verduras!”

Assim, o vendedor de papagaios pagou o imposto sobre verduras e retornou para a Avenida a vender os seus papagaios.

 

vendedor de papagaio

 

 

 

O dito pelo não dito

 

       Annibal Augusto Gama

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Ulisses estava compromissado com Maria Amélia, e até já se marcara a data para o casamento. Mas, um mês antes, ela lhe disse, devolvendo-lhe a aliança retirada do anular da mão direita: “Cheguei à conclusão de não quero me casar. Você me desculpe, mas está rompido o nosso compromisso”.

Ele também retirou a sua aliança do dedo e, cheio de decepção, mas mantendo o seu orgulho masculino, foi embora.

Não se tornou um ébrio e na bebida não buscou esquecer. Dedicou-se com furor ao trabalho, aos empreendimentos e, dois anos depois, estava rico, muito rico.

Via Maria Amélia nas ruas, de vez em quando, mas não lhe tirava o chapéu, porque não o usava. Disputado desde então por outras moças casadoiras, rejeitava a todas com delicadeza. Ia ao bordel da Ambrosina duas vezes por semana, e preferia as putas. Com elas, paga-se e vai-se embora.

Sua mãe, que o criara com mimo, dizia-lhe: “Você precisa casar-se, para assentar a cabeça. Principalmente agora, que está rico. Tire da cabeça aquela Maria Amélia” 

Ambos permaneceram solteiros.

Quando lhe informaram que Maria Amélia estava doente, muito doente, e talvez desenganada, ficou abalado. Deveria visitá-la?

Afinal resolveu ir à casa dela. Achou-a quase deitada numa poltrona de inclinar, muito pálida, os olhos fundos, magra, e embrulhada numa manta grossa. Ela tinha então trinta e dois anos e ele chegava aos quarenta.

— Que é isso? Trate de se curar, você ainda tem muitos anos pela frente.

Ela sorriu e abanou a cabeça.

— E você, por que ainda não se casou? — ela quis saber.

— Acho que tenho vocação para celibatário.. 

Ela tornou a sorrir e fez-lhe outra pergunta inesperada:

— Ainda guarda as alianças?

Ele ficou vermelho e encabulado. Sim, guardava o par de alianças no bolso, desde aquele remoto rompimento.

 — Deixe-me ver. 

Ulisses retirou as alianças do bolsinho do paletó. Maria Amélia enfiou uma delas no anular da mão esquerda, e a outra no mesmo dedo dele. 

— Agora estamos casados, até que a morte nos separe…

Não foi preciso padre para formalizar o casamento. Isto é, o padre veio alguns dias depois para dar a extrema unção a Maria Amélia.

E assim, viúvo sem ser viúvo, Ulisses permaneceu sozinho pelo resto de sua existência. E mandou erguer, no túmulo de Maria Amélia, um anjo de asas abertas, prestes a alçar voo.

 

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Champollion e a pedra no sapato

 

        Annibal Augusto Gama

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Foi Champollion que decifrou a “Pedra da Roseta”, mas ignoro se algum dia decifrou a pedra no sapato. É uma pedrinha insignificante que entra no sapato e incomoda como o diabo. Tirar o sapato na rua e sacudir fora a pedra é deselegante. Então, você retorna para casa, entra, tira o sapato e despeja dele a pedrinha. É uma coisinha à toa, mas como atrapalhava!

A existência é feita desses pedregulhos, menores ou maiores. Machado de Assis já escreveu sobre as botas apertadas, mas não sobre a pedra no sapato. As botas apertadas foram feitas para você sacá-las, e sentir-se, depois disso, aliviado e feliz. A pedra no sapato substitui as botas apertadas, e o resultado é quase o mesmo.

Nós às vezes sofremos muito com coisas miúdas. E tal sofrimento não é menor do que o sofrimento com as coisas graúdas. Também há alegrias pequenas que se equivalem às grandes alegrias. Outro dia, indo a São Paulo, perdi os meus óculos de ver de perto, esquecendo-o no assento de um carro de aluguel. Ora, eu fora à capital paulista justamente para visitar as livrarias que aqui em Ribeirão Preto já não há. E como ver e escolher livros, sem a ajuda dos óculos? Fui à Livraria Brandão, na Rua Xavier de Toledo, um sebo magnífico com mais de quarenta mil livros. Alguém, lá dentro, ofereceu-me os seus óculos. Serviram-me um pouco, e pude vasculhar as prateleiras, botando os livros sobre uma mesa. Reuni mais de vinte livros e comprei-os. O dono da Livraria Brandão é um ótimo sujeito, e conversamos muito.

Dali fui à Livraria Cultura, mas lá ninguém me ofereceu óculos para enxergar perto. Ainda assim, arranjei-me como pude e comprei outros livros.

Agora, já em casa, e com os óculos em duplicata que tenho, leio uns e leio outros.

O negócio é este: arranjar-se com a pedrinha no sapato.

Como eu também estou com um começo de catarata, perguntou-me alguém porque não me opero. Respondi que prefiro a catarata, porque assim deixo de ver tanta mulher feia. Mas também perco as mulheres bonitas, que são muitas.

A vida é uma compensação: dá a pedra no sapato e a felicidade de poder tirá-la dele.

Eu podia escrever um livro de autoajuda. Ganharia dinheiro. Mas não creio em autoajuda. Na verdade, nós nos ajudamos quando ajudamos aos outros.

Quando saio com o meu cachorrinho Pichorro, dou sempre com um sujeito que vigia os carros dos outros. Ele, logo que me vê, pede-me um cigarro e algumas moedas. Dou, embora saiba que aquilo não adianta nada. O sujeito continuará miserável como antes.

Mas, dar é uma pedrinha que tiro do sapato. Sou eu que lucro.

Quando é que somos verdadeiramente felizes? 

Quando não pensamos nisso.

 

botas apertadas 1 

 

 

Teodureto

 

        Annibal Augusto Gama

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Teodureto quebrou um dedo, quando lhe desabou sobre a mão a janela de guilhotina. Saiu urrando de dor, e dançando pela casa. Foi ao médico, que lhe engessou o dedo e ficou dedo duro. Mas não era.

Quando conheceu Sofia, ela lhe perguntou, rindo:

— Teodureto não é nome de remédio?

Os remédios curam ou não curam. Alopatia, homeopatia, benzeções e garrafadas. Tosse? Tome Bromil.

O que não tem remédio, remediado está.

O remédio é amar, mas amar também dói.

Teodureto amou Sofia, mas fie-se em quem só fia.

Droga para perda de memória é fosfato. 

Vestido de fraque, Teodureto foi falar com o pai de Sofia 

— Peço-lhe autorização para namorar Sofia, noivar e casar.

O homem tinha muitos cuidados com a filha e lhe perguntou severamente:

— O senhor o que faz?

— Por enquanto, nada.

— Pois nade em mar crespo, e volte salgado.

Vendo o triste pastor que assim lhe era negada a sua pastora, começou de servir outros sete anos, dizendo, “mais servira se não fora para tão longo o amor tão curta a vida” 

Com o dinheiro que possuía, abriu uma farmácia, botando espetado na porta o marinheiro carregando um grande peixe, da Emulsão de Scott.

Remédio vai, remédio vem, ia fazer injeções nas bundas fofas das madamas, espetando-lhes a agulha e depois soprando.

Enquanto isso, Sofia ria.

Quinze anos depois, Teodureto estava gordo e calvo e, ao luar da noite, roía o queijo da Lua.

Não casou, e envelheceu.

E, ao invés de descobrir um remédio para lembrar, inventou outro, para esquecer.

No esquecimento, todas as Sofias andam de braços dados com as Briolanjas.

As mulheres são como maçãs nas gavetas: secam e murcham.

Lembrai-vos disso, meninas: o amor é para dar-se.

 

Emulsão de Scott

 

 

Telefone para Cacilda

 

          Annibal Augusto Gama

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Encontrei-o por acaso na fila de ônibus. Abraçamo-nos e trocamos algumas palavras insignificantes. Às vezes, passava anos sem vê-lo. Ele fora meu colega de ginásio. Já com o pé no primeiro degrau na porta do ônibus, ele voltou a cabeça e me disse: “Telefone para Cacilda. Não deixe de telefonar para Cacilda”. A porta do veículo fechou-se, e o ônibus partiu.

Permaneci na calçada alguns minutos, e, de repente, tornou a acudir-me a sua recomendação: “Telefone para Cacilda. Não deixe de telefonar para Cacilda”.

Ora, eu não conhecia nenhuma Cacilda, e não tinha o número do telefone de nenhuma Cacilda. A Cacilda que eu conhecia, a única, fora Cacilda Becker, a atriz, a maravilhosa Cacilda Becker, que já estava morta havia muitos anos.

Mas a sua recomendação não saiu mais da minha cabeça. Quantas Cacildas haveria na cidade, no país? Milhares. O seu prenome não viria na Lista Telefônica, sabido que a Lista traz o sobrenome, e depois o prenome.

Ainda assim, impus-me uma obrigação: todos os dias discava trinta números de telefone. E quando me atendiam, perguntava: “A Cacilda está? Quero falar com ela”. Foram dez mil, novecentos e cinquenta telefonemos, num ano. Se me atendiam, a resposta era que não havia nenhuma Cacilda na casa. Outros se irritavam, e me xingavam.

Mas a minha obsessão persistia. Tinha de telefonar para Cacilda, falar com Cacilda.

Os amigos começaram a achar que eu estava maluco. “Procure um psiquiatra”, aconselhavam-me.

Afinal, fui a um psiquiatra. Esperei na sua sala, até que uma porta foi aberta e mandaram-me entrar.

Entrei, e fui logo dizendo à mulher que me atendeu tudo o que acontecia comigo. Ela anotou o que eu dizia, ou gravou. E disse-me: “Eu sou a Dra. Cacilda. O seu estado é grave, o senhor precisa de tratamento. Venha, uma vez por semana, a esta mesma hora, cobro R$250,00 por sessão”.

A Dra. Cacilda, porém, não era a Cacilda que eu procurava. Ainda assim, continuei a comparecer, uma vez por semana, às sessões, durante as quais falava de tudo. Da minha infância, dos meus pais, de um ursinho de pelúcia que tivera, e cujo nome era Afonso. A psiquiatra ouvia-me, gravava as minhas palavras, e não dizia nada. Meus sonhos também a interessavam.

Continuei  telefonando para Cacilda, sem resultado.

Outro amigo me disse: “Nós sempre procuramos Cacilda”.

“E a encontramos, afinal?”— perguntei-lhe.

E ele respondeu-me, sacudindo a cabeça:

“Jamais!”

 

cacilda becker foto 11

 

 

 

O binômio de Newton

 

          Annibal Augusto Gama

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Se há coisa em que acredito piamente é no binômio de Newton. Pouco importa que não o compreenda, já que não compreendo muitas outras coisas. O binômio de Newton fascinou a minha juventude, e ainda fascina a minha velhice. Também sempre admirei a Tábua de Logaritmos e os vasos comunicantes. E, como o cão de Pascal, uivo para a Lua, para a imensidão dos espaços vazios.

Um dia desses, apareceu-me no portão o homem de Piauí. E embora eu não acredite na existência do Piauí, que é uma ficção geográfica, fui atendê-lo quando ele apertou a campainha. Ele logo foi me dizendo: “Vim trazer-lhe a salvação”. Tão ardentemente desejava e desejo a salvação, que deixei entrar na minha sala o homem de Piauí. E ele logo me exibiu um jornal, explicando-me que bastava que o assinasse, que estaria salvo. Assinei o jornal, que agora recebo regularmente, e o homem de Piauí me garantiu: “O senhor está salvo”.

Quem diz, porém, que não estou salvo, e que não me salvarei, é o Padre Luís, que me tacha de herege impenitente.

— Padre, mas eu não fiz nada — eu lhe digo. 

-— Por isso mesmo, o senhor vai para o quinto dos infernos. 

Mas ao quinto dos infernos, prefiro o quinto de vinho tinto. 

Todavia, quero estar com minha mulher, com meus pais, e com alguns amigos. E, de qualquer maneira, “no céu, no céu, com minha mãe estarei…” 

Retifico-me: fiz muitas coisas, algumas más, e outras boas. Somadas as contas, tudo se equivale.

A verdade, num poço frio, morreu de pneumonia.

Capataz de uma fazenda que não tive, plantei arroz, feijão, e café. Criei gado no pasto.

Entre as minhas vacas, prefiro também a vaquinha branca, que me dá leite, achega-se à porteira e muge.

Todos os navios saíram dos portos.  Mas, pescador na lagoa, cantarolo:

 

                                               “Pescador da barca bela,

                                               Onde vais pescar com ela,

                                               Que é tão bela, pescador?”

 

Ela por elas, vou indo para Santiago de Compostela.

 

                                               “Ay flores do uerde pino,

                                               se sabedes nouas de meu amigo!

                                                           ay Deus, e hu é?

 

                                               Ay flores, ai flores do uerde ramo,

                                               se sabedes novas de meu amado!

                                                           ay Deus, e hu é?

 

                                               Se sabedes nouas de meu amigo,

                                               aquel que mentiu do que pôs comigo!

                                                           ay Deus, e hu é!

 

 

A formiguinha ruiva

 

          Annibal Augusto Gama

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Debruçado no parapeito da janela, ele vê a formiguinha ruiva, que se esconde numa fresta da madeira. A formiguinha disfarçada, que espera a mosca pousar ali, para a agarrar.

Teve um amigo e colega que não deixava varrer, do encontro de duas paredes, na sua sala, uma teia de aranha, com a sua aranha pernalta, lá em cima. Ele punha na vitrola o disco de Mozart, e começada a melodia, a aranha descia por um fio e permanecia escutando, embevecida, a música. Mas, quando tocava Beethoven, a aranha, mais que depressa, subia pelo fio e ficava lá em cima. Não apreciava Beethoven.

 

                                   Desta janela, exígua fresta

                                   Elegeu por morada uma formiga.

                                   Ao peitoril, como por praça antiga,

                                   Sai a passeio, a ver o sol, em festa.

 

                                   Foge ao menor rumor, lépida e lesta,

                                   (Lembrando-me, permita-me que t´o diga,

                                   A almazinha que tens, querida amiga,

                                   E que a todos se esquiva por modesta).

 

                                   Se é surpreendida acaso e o tempo é estreito

                                   Para tornar, fugindo, à frincha escura,

                                   Súbito estaca… nem um passo além!

 

                                   E ruiva como a luz, e de mistura

                                   Com a luz, na luz se some de tal jeito,

                                   Que estando à vista, não a vê míngüem.

 

O poeta Alberto de Oliveira, com o seu bigode torcido em ponta, fala, em outro poema, em “cheiro de espádua”. Mas era a tua espádua, Aninha, que cheirava bem.

Agora, ele está, menino, agachado sobre o rego, mo quintal, construindo com pauzinhos, uma ponte, para as formigas passarem de um lado para outro da torrentezinha.

— Que está você fazendo aí, menino?

— Estou fazendo uma ponte, para as formigas atravessarem o reguinho 

— Que menino mais bobo.

Bobas ou espertas eram também as formigas, que se recusavam atravessar sobre a sua ponte. Não acreditavam na sua engenharia.

Mais tarde, muito mais tarde, ele veria a ponte de ferro, que Euclides da Cunha construíra sobre o Rio Pardo. E, para cá, a casinhola de sarrafos, onde ele escreveu algumas páginas de Os Sertões. Mais duro foi atravessar a ponte sobre o Rio Grande, da fazenda à Estação de Jaguara. O pai ia à frente e recomendava: “Não olhe para baixo”. Lá embaixo, um abismo, as águas ferviam, E se viesse o trem, pela ponte? Não vinha, não era hora dele.

 E ele chegou afinal à Estação de Jaguara, trêmulo, as pernas bambas.

 Mas tinham ainda de voltar, santo Deus!

Hoje ele percebe que todas as pontes ruíram atrás dele.

 

 formiguinha