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abaixo
da tênue linha-d’água
do que dizemos apto
jaz
a profundeza de um oceano
borbulhante de palavras que só o
cego
surdo
mudo
(ou poeta)
é capaz
enxerga
escuta
prenuncia
(ou deleta)
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Selma Barcellos
Há um ano Millôr nos deixava pior
mas suas millorianas minoram
o que não pode ser melhor.
Selminha, fã absoluta da genialidade de Millôr e Shaw, pinçou-lhes algumas preciosidades:
“Um dos autores de que mais gostei foi, naturalmente, o (Bernard) Shaw. Cheguei a traduzir algumas coisas dele, mas eu não sinto influência, apesar de o Shaw ter sido um cara brilhantíssimo e eu mesmo dizer:
‘Todo homem nasce original e morre plágio.’ ”
(Millôr Fernandes)
Bernard Shaw
Ciência
Shaw: “A ciência nunca resolve um problema sem criar pelo menos dez outros.”
Millôr: “Todos sabem que a ciência tem seus lados negativos: a invenção do microscópio provocou o aparecimento de milhões de micróbios.”
Democracia
Shaw: “A democracia é apenas a substituição de alguns incompetentes por muitos corruptos.”
Millôr: “E por fim chegamos à Democracia, esse extraordinário modelo de organização social composto de três poderes e milhões de impotências.”
Juventude
Shaw: “A juventude é uma coisa maravilhosa. Que pena desperdiçá-la em jovens.”
Millôr: “Sou jovem há muito mais tempo do que qualquer desses rapazinhos que andam por aí.”
Moda
Shaw: “A moda, afinal, não passa de uma epidemia induzida.”
Millôr: “As modas vão e vêm, mudam sempre: o ridículo é que é permanente.”
Música
Shaw: “Minha objeção aos instrumentos de sopro é que eles prolongam a vida de quem os toca.”
Millôr: “Para você ser considerado musicalmente culto é bom, pelo menos, saber distinguir entre Gulda, Favestaff, Thalberg, Ritter, Steinway, Erard, Busoni, Esenfelder, Bülow, Beckstein, Serkin, Bösendorfer e Pleyel, quais são os pianos e quais são os pianistas.”
Pais
Shaw: “A paternidade é uma profissão importante. Tão importante, aliás, que deveria exigir testes de aptidão, no interesse dos filhos.”
Millôr: “Certos pais têm a pretensão de preparar os filhos pra vida: outros têm a megalomania de preparar a vida pros filhos.”
Paixão
Shaw: “Quando duas pessoas estão sob a influência da mais violenta, insana, enganosa e passageira das paixões, são obrigadas a jurar que continuarão naquele estado excitado, anormal e tresloucado até que a morte os separe.”
Millôr: “Toda paixão desvairada esconde uma manchete policial.”
Saúde
Shaw: “Use toda a sua saúde a ponto de esgotá-la. E gaste todo o seu dinheiro antes de morrer. Não vale a pena sobreviver a essas coisas.”
Millôr: “A saúde é um estado físico-permanente anormal que não conduz a nada de bom.”
Vergonha
Shaw: “Quando um idiota faz alguma coisa de que se envergonha, diz que está apenas cumprindo seu dever.”
Millôr: “Finalmente uma reação. Um faxineiro do Banco Central, envergonhado com a roubalheira a que assiste todos os dias, se atirou pela janela do edifício. Porém, coerentemente com o local, teve a precaução de se atirar do primeiro andar. E para dentro. Mas já é um princípio.”
Millôr Fernandes
“Penicilina puma de casapopéias
Que vais peniça cataramascuma
Se partes carmo tu que esperepéias
Já crima volta pinda cataruma.Estando instinto catalomascoso
Sem ter mavorte fide lastimina
És todavia piso de horroroso
E eu reclamo — Pina! Pina! Pina!Casa por fim, morre peridimaco
Martume ezole, ezole martumar
Que tu pára enfim é mesmo um taco.E se rabela capa de casar
Estrumenente siba postguerra
Enfim irá, enfim irá pra serra.”(Millôr Fernandes)
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=l7tIX8kSmD0[/youtube]
“Lamentos” (Pixinguinha / Vinicius de Moraes), Yamandu Costa / Dominguinhos
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=EtoEpxSMfSc[/youtube]
Adalberto de Oliveira Souza
COMPRÉHENSION
Il y a des choses d`hier
que je ne comprends pas
aujourd`hui.
Il y a des choses d`hier
que je pense comprendre
aujourd`hui.
Il y a des choses d`aujourd`hui
que je ne comprends pas.
Il y a des choses d`aujourd`hui
et d`hier.
Que je pense comprendre
et je regrette.
COMPREENSÃO
Há coisas de ontem
que eu não compreendo
hoje.
Há coisas de ontem
que eu penso compreender
hoje.
Há coisas de hoje
que eu não compreendo.
Há coisas de hoje
e de ontem
Que eu penso compreender
e lamento.
Annibal Augusto Gama
Debruçado no parapeito da janela, ele vê a formiguinha ruiva, que se esconde numa fresta da madeira. A formiguinha disfarçada, que espera a mosca pousar ali, para a agarrar.
Teve um amigo e colega que não deixava varrer, do encontro de duas paredes, na sua sala, uma teia de aranha, com a sua aranha pernalta, lá em cima. Ele punha na vitrola o disco de Mozart, e começada a melodia, a aranha descia por um fio e permanecia escutando, embevecida, a música. Mas, quando tocava Beethoven, a aranha, mais que depressa, subia pelo fio e ficava lá em cima. Não apreciava Beethoven.
Desta janela, exígua fresta
Elegeu por morada uma formiga.
Ao peitoril, como por praça antiga,
Sai a passeio, a ver o sol, em festa.
Foge ao menor rumor, lépida e lesta,
(Lembrando-me, permita-me que t´o diga,
A almazinha que tens, querida amiga,
E que a todos se esquiva por modesta).
Se é surpreendida acaso e o tempo é estreito
Para tornar, fugindo, à frincha escura,
Súbito estaca… nem um passo além!
E ruiva como a luz, e de mistura
Com a luz, na luz se some de tal jeito,
Que estando à vista, não a vê míngüem.
O poeta Alberto de Oliveira, com o seu bigode torcido em ponta, fala, em outro poema, em “cheiro de espádua”. Mas era a tua espádua, Aninha, que cheirava bem.
Agora, ele está, menino, agachado sobre o rego, mo quintal, construindo com pauzinhos, uma ponte, para as formigas passarem de um lado para outro da torrentezinha.
— Que está você fazendo aí, menino?
— Estou fazendo uma ponte, para as formigas atravessarem o reguinho
— Que menino mais bobo.
Bobas ou espertas eram também as formigas, que se recusavam atravessar sobre a sua ponte. Não acreditavam na sua engenharia.
Mais tarde, muito mais tarde, ele veria a ponte de ferro, que Euclides da Cunha construíra sobre o Rio Pardo. E, para cá, a casinhola de sarrafos, onde ele escreveu algumas páginas de Os Sertões. Mais duro foi atravessar a ponte sobre o Rio Grande, da fazenda à Estação de Jaguara. O pai ia à frente e recomendava: “Não olhe para baixo”. Lá embaixo, um abismo, as águas ferviam, E se viesse o trem, pela ponte? Não vinha, não era hora dele.
E ele chegou afinal à Estação de Jaguara, trêmulo, as pernas bambas.
Mas tinham ainda de voltar, santo Deus!
Hoje ele percebe que todas as pontes ruíram atrás dele.
“É certo; então reprimamos
esta fera condição,
esta fúria, esta ambição,
pois pode ser que sonhemos;
e o faremos, pois estamos
em mundo tão singular
que o viver é só sonhar
e a vida ao fim nos imponha
que o homem que vive, sonha
o que é, até despertar.”
(“A vida é sonho” (excerto), Calderón de la Barca)
Saídos da Livraria Laemmert, os circunspectos cavalheiros encasacados entraram por volta das 17 horas na confeitaria, tiraram as cartolas e os chapéus ao se sentarem numa ampla mesa reservada, ao fundo.
Logo foram atendidos por dois garçons, igualmente impecáveis nos seus trajes. A maioria preferiu chás variados, torradas, bolachinhas e outras guloseimas servidos àquela hora e que eram a especialidade da Casa. Alguns poucos arriscaram um xerez ou um vinho do Porto. Eu fui um deles.
O grupo observava uma tácita hierarquia. Os mais jovens eram todo ouvidos e pouco falavam. E o centro da reunião era o senhor de barba e cabelos encanecidos, amulatado, de pince nez, que falava pausadamente de modo a disfarçar uma leve gaguez. Tratava-se de Joaquim Maria Machado de Assis, intelectual consagrado, cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta.
— Como sabem os senhores, apóio a ideia dos confrades Medeiros de Albuquerque e Lúcio de Mendonça de criarmos uma Academia Brasileira de Letras, nos moldes da Academia Francesa, e creio mesmo que tal providência, por necessária, já se faça tarda, não para colhermos a efêmera glória mundana, mas como um marco da instituição de uma literatura nacional.
Ouvia-o atentamente, enlevado com a lucidez e elegância que expunha seu pensamento, a velada ironia de suas observações, tal como em seus romances, contos, poemas e crônicas.
Que honra e privilégio estar na companhia de tantas figuras admiráveis, especialmente dele, e a participar de momentos que haveriam de se tornar históricos!
Mas o que fazia eu ali?
Era um dos mais moços e sentia a vaga sensação de ser um estranho, embora nenhum dos convivas denotasse isso, tratando-me com lhaneza e afabilidade natural dos amigos.
O próprio Machado de Assis algumas vezes pareceu dirigir-se a mim, com o esboço de um sorriso, aparentando certa afeição, como se eu fosse um pupilo dileto ou até mesmo um filho, que ele nunca teve (ou teve, segundo as más línguas).
Apesar de me sentir muito bem e interessado na conversação e nas opiniões que se alternavam, pressentia que a qualquer momento haveria de deixá-los.
Como se sabe, depois de várias reuniões preparatórias, a Academia Brasileira de Letras foi fundada em dezembro de 1896, e oficialmente instalada em 28 de janeiro de 1897, com Machado de Assis sendo eleito o primeiro presidente da instituição, cargo que ocupou até sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro em 29 de setembro de 1908.
Eis que desperto no meu quarto, nesta São Sebastião do Ribeirão Preto, na manhã de um sábado do ano da graça de 2013, com as imagens vívidas do que relatei acima e uma sensação de rara euforia.
Acorro à cozinha, onde minha mulher prepara o café, e lhe conto em atropelo o sonho tão estranho quanto fascinante.
Ela, que sempre foi extraordinariamente intuitiva e com frequência faz predições que se confirmam, escuta-me com um sorriso maroto e os olhos verdejantes, e ao final diz que talvez eu possa mesmo ter estado lá. Quem sabe?
— O que mais importa é que o sonho lhe fez bem e você acordou numa manhã feliz.
De que matéria serão feitos os sonhos e as manhãs felizes?
MATÉRIA PRIMA
De que são feitos os sonhos?
Nostálgicos amores
revoltos mares
remotos temores
fragmentos de luzes
no umbroso porão
da memória ancestral
do primeiro Adão
e seu perdido Jardim
de flores, frutos, olores,
arrebatado de mim
pelo tempo e pela treva.
Tortuosa travessia
entre o crepúsculo e a aurora,
a vertigem do abismo me leva
a galgar trôpego e sôfrego
o promontório do dia.
Brenno Augusto Spinelli Martins
(seu violão e o pôr do sol)
Quando a jornada é louca
Fica no fundo da boca
Um gosto de gosto oco
Porque a vida escapa um pouco
Fica o relógio sem corda
A cerveja fica tórrida
Amendoim sem caroço
A girafa sem pescoço
O elefante sem tromba
Ou o oásis sem sombra.
Quando o azul fica cinzento
Fica sem pinto o jumento
Fica sem pinto a galinha
Fica sem asa a andorinha
Beija-flor fica sem flor
Carmelita sem pudor
Romance sem namorada
E a fogueira apagada
Fica o cachorro sem osso
Bóia-fria sem almoço.
Quando o caminho é incerto
Fica longe o que era perto
O café sem cafeína
Cigarro sem nicotina
Fica o doce sem açúcar
A filharada sem Lucas
Parece um vinho sem álcool
Ou um artista sem palco
Ou torcedor que não xinga
Ou então um beijo sem língua.
Quando o chão é movediço
Fica o final sem início
É como abelha sem mel
Ou o samba sem Noel
A centopéia sem pé
A seleção sem Pelé
João Bosco sem violão
E a transa sem tesão
Tim Maia sem um quilo do bom
E a poesia sem Drummond.
Quando o horizonte se esconde
E o mundo fica sem onde
Acaba a cor da paixão
E a corda do coração
Fica a bússola sem norte
E o jogo de azar sem sorte
Fica o crime sem bandido
E a vida sem sentido
Como a morte sem nascer
Ou como eu sem você.
Mais um sucesso do trio
e eu fico bissexto tio
babuzando a Luiza
que meu sonho cristaliza
de uma crooner assim maneira
me embalando a vida inteira
que no rock eu me vou.
Sentimento Bissexto
(Composição de Brenno e Claudia, interpretação Luiza)
Tudo bem eu reconheço
Esse meu sentimento bissexto
Tá em mim e quando ele vem
Fico assim
São como tiros soltos a la Tarantino
A bala perdida mudando o destino
Parece que o cara morre mais
Parece que eu amo mais
Eu te bebo on the rocks
Eu te quero on the road
Eu te como in the box
Eu te escuto rock’n’roll
Eu te cheiro in the fields
Eu te fumo on the hill
Eu te amo I love you
Eu te danço rock’n’roll