Posts from março, 2013

Demorô, vó!

 

      Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

Você passa a vida acarinhando seus livros prediletos, sentindo até o cheirinho da época em que foram lidos, tirando-lhes o pó, protegendo-os das traças para entregá-los em ato solene aos netinhos e o que acontece? Uma engenhoca sedutora, mimo digital com milhares de livros eletrônicos, pouco mais de 200g e espessura milimétrica, chega para desbundar sua biblioteca hereditária. É duro.

Serão e-readers os netos… Que argumentos usarei para que se encantem e viajem nos meus barquinhos de papel? Como convencê-los de que aqueles tesouros arqueológicos na estante da vovó têm valor inestimável?

Missão impossível concorrer com o barato de virar páginas a um simples toque; de ver uma orelha virtual registrar onde se interrompeu a leitura (psiu, não espalhem, eu marcava livro com pétala de flor…); de usar óculos e poder perdê-los entre almofadas – o corpo da letra amplia; de esbarrar em palavra desconhecida e ter o significado ali, ao pé da página (repouse em paz, Aurelião); de cansar de ler silenciosamente e uma voz seguir adiante. Com música ao fundo. Covardia.

Mas tem lá seus pontos fracos o brinquedinho… Nele tudo aparece em preto, branco ou cinza e a cartela da vida é outra. A voz que lê usa a mesma entonação para uma ata de condomínio e um poema de Bandeira. Sem contar que não permite aquele diálogo incessante a que se referia Maurois – “o livro fala e a alma responde”. Não tem perfume. Jamais será arte. E tenho dito.

Porém, como ele representa menos árvores derrubadas, soluciona problemas de ordem prática e – maravilha! – pode ser cura para azia e preguiça de ler de crianças, jovens, uns e outros… prometo tentar.

Se cansar de ficar “muderninha”, tem erro não. Os netos saberão onde me encontrar. Periga só de cair pirlimpimpim da estante e, enfeitiçados, rolarmos juntos no tapete, mais os tuaregues, o saci, o Quixote…

 

LIVROS-E-KINDLE

 

 

Um caminho para o céu (antes do avião)

 

 

              Nicolas Sauvage

Nicolas e família

 

 

 

 

 

 

 

Este poema e o anterior “Esperança” (aqui) de Nicolas Sauvage foi escrito para uma exposição “L`art au défi de l`esperance”, que foi realizada em janeiro de 2013 na Prefeitura do VI Distrito de Paris com a colaboração do artista plástico Eric Michel, com a intenção de fazer um livro objeto. Como veem, há um teor místico.

 

 

un chemin vers le ciel (avant l’avion)

 

quand j’étais enfant sur les petites routes de campagne

à vélo je me souviens de rouler sous le plafond nuageux

les rayons du soleil traversaient de biais une grande trouée

la lumière se posait en oblique comme la main de Dieu

que l’on voit dans les tableaux sombres à l’interieur des églises

 

rouler

ne pas penser à toi

penser en toi

 

rouler

me coucher avec toi m’allonger en toi

dormir avec toi dormir en toi

 

rouler

me réveiller contre toi

en toi éveillé

 

penser en toi sur cette route de campagne et garder l’équilibre

à vélo sous le plafond nuageux et

la lumière du soleil fait une échelle posée là pour aller au ciel

est-ce une main trop large à serrer trop claire à regarder

 

Nicolas Sauvage

 

bicicleta 4 (3)

 

um caminho para o céu (antes do avião)

 

quando criança nas pequenas estradas do campo

de bicicleta me lembro andar sob o céu escuro

os raios de sol atravessavam em viés uma grande brecha

a luz se punha obliquamente como a mão de Deus

que a gente via nos quadros sombrios no interior das igrejas

 

pedalar

não pensar em você

pensar em você

 

pedalar

deitar-me com você me estender com você

dormir com você dormir em você

 

pedalar

despertar contra você

em você desperto

 

pensar em você nessa estrada do campo e manter o equilíbrio

na bicicleta sob o céu escuro

a luz do sol coloca ali uma escada para ir para o céu

é uma mão tão grande para apertar e clara demais para olhar

 

 

Tradução de Adalberto de Oliveira Souza

 

 

 

 

 

Música em estado puro

(para a poesia em estado puro de Nicolas Sauvage) 

 

 

“Bicicleta” (Zé Renato), Boca Livre

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=EvwI02YInGY[/youtube]

 

 

Creio em Deus Pai…

 

          Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1

 

 

 

 

 

 

Tendo sido batizado na Igreja de Nossa Senhora Aparecida, aos três anos, sendo meu pais o Doutor Ciríaco André de Matos Pereira e Dona Mariana Correia Matos Pereira, padrinhos o Cavalheiro Fidalgo Tomé de Abreu e Albuquerque e sua mulher Dona Carlota Figueiredo de Albuquerque, oficiante o Padre Domingos da Santa Fé, tornei-me católico, apostólico romano, por força do compromisso que em meu nome fez a Deus o meu padrinho.

Até os quatro anos, não pensei em Deus nem na sua corte de anjos e santos. Até que comecei a ouvir os trovões e o raios, tão abundantes em nossa cidade, que abalavam nossa casa e faziam minha mãe ir acender velas para Santa Bárbara e São Jenônimo, exclamando, aterrada,“Deus nos acuda, é o fim do mundo!”

Comecei então a saber que Deus, ainda que nos mandasse trovões e raios que te partam, ao mesmo tempo nos socorria e acudia. E que havia também, ao seu lado, os santos e as santas, intermediários das nossas súplicas. Também, aos sete anos, levaram-me a ser catequizado, para mais tarde receber a Primeira Comunhão.

— Crês em Deus? —  perguntava-me a minha catequizadora, uma senhora gorda, de bandós e cabelos brancos, e eu respondia: “Sim, creio”. E ela prosseguia: “Amarás a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Honrarás pai e mãe. Não cobiçarás a mulher do próximo.”

Ensinou-me ela, também, o Pai Nosso que estais nos céus, a Ave Maria, o Credo, e outras orações. E eu devia, pela manhã, ao despertar e à noite, ao ir dormir, além de escovar os dentes, ajoelhar-me à beira da cama e rezar algumas orações. Por outro lado, a Santíssima Trindade, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, representados por um triângulo equilátero, me perturbava. E ainda mais quando, já na escola, eu via o triângulo equilátero dentro do qual havia um olho aberto e a legenda “Deus me vê”. Deus me via todo o tempo, era um espião.

Terror e amor…

Tomei conhecimento também do Diabo, que era um sujeito muito safado, com chifres, rabo, pés de cabra e fedendo a enxofre.

Não obstante, meu Pai, quando estava encolerizado, costumava dizer: “O Diabo que te carregue!”

Os nomes sujos eram proibidos e, se acaso os pronunciássemos, minha Mãe mandava: “Vá lavar a boca, menino!”, e aplica-me um beliscão. Na casa, o único que não era mandado lavar a boca, nem era beliscado, era o meu Pai.

Na abóboda pintada da Igreja, eu via Deus barbudo, o seu filho Jesus, e o Espírito Santo, que era uma pomba. E nuvens, profetas, santinhos e santarrões, além do altar-mor e dos nichos com as imagens dos e bem-aventurados.

Cantava-se, em coro:

 

                                   “No céu, no céu,

                                   Com minha Mãe estarei…”

 

Ora, minha Mãe estava em casa, ou ali sentada, num banco, coberta por um véu negro.

As procissões da Semana Santa, ou de outros dias santificados, saiam da porta da Igreja e o povo desfilava pelas ruas, atrás dos andores carregados por pessoas vestidas de opa, com a Banda de Música atrás. O turíbulo, o cheiro de incenso, na nave, as beatas ajoelhadas, os sinos batendo. 

De costas, o padre murmurava:

— Introibo ad altarem Dei.

E o coroinha completava 

— Ad Deum qui laetiificat juventutem meam.

Na outra calçada, de outro lado da rua, um pouco acima da nossa casa, uma menina me olhava e eu olhava a menina.

 

 

 

Nota do Editor

A menina na outra calçada era minha mãe, que um dia, disputando uma cadeirinha com o menino, arranhou-lhe fundo o rosto, deixando uma cicatriz.

Passados muitos anos, o menino já moço voltaria à cidade da infância, de onde se mudara. Acabava de ter um trabalho premiado na “Semana Euclidiana”, realizada em São José do Rio Pardo, e aproveitava para passar alguns dias na Guaxupé natalícia e rever amigos e familiares.

Reencontrou-se então com a menina que o havia ferido, também já moça.

Soube, então, que a marca que ela lhe deixara seria para sempre.

(Os nomes no primeiro parágrafo são fictícios)

 

 

O inseto

 

 

inseto 3 (3)

 

 Sobre o mármore

 insípido

 o pequeno inseto

 atônito

 patinha longitudes

 elípticas.

 

 Na vasta superfície

 álgida

 de pedra e água

 afeiçoada

 persiste no tracejo

 resignado

 sem atinar a mão

 iminente

 que sustém a existência

 precária.

 

 Seremos nós esse bicho

 errático

 a vaguear pela solidão

 inóspita

 enquanto outra mão

 onipotente

 concede a graça

 sombria

 de mais um dia

 só mais um dia?

 

 

 

A pedido de Mestre André 

 

 

“Última forma” (Baden Powell / Paulo César Pinheiro) MPB4

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=mCSf3P52-fk[/youtube]

 

 

 

Pit-mamãe

 

      Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Querida ex-colega de trabalho envia notícias da chegada do primeiro netinho (bem-vindo, Bernardo!) e anexa esta charge. De imediato, a lembrança de certa “ pit-mamãe” , em relato de tempos atrás.

 

 

Não vejo novelas. São suficientes a ida ao salão, as mulheres comentando, e as dezenas de revistas que folheio enquanto as luzes do cabelo “acendem”. Daí saber que a atual “trama das oito” aborda uma pit-família. Pimpolho manda e desmanda, destrata a professora e é, invariavelmente, acobertado pelos pais em suas gracinhas.

Em recente reportagem intitulada “Pit-alunos levam professores a procurar divã”, leio o seguinte depoimento: “Um professor do curso de Direito foi procurado por um aluno que contou ser policial militar reformado por problemas psiquiátricos. O aluno começou a dizer que precisava de nota 6 para passar e que estava com vontade de matar alguém naquele dia.” O professor nem titubeou: “Toma um 8 e não se fala mais no assunto.”

O que anda acontecendo, senhores? Estive em sala de aula por 27 anos e não tenho uma pit-história?  “Os tempos eram outros, tia Selma!” , dirão alguns. Nem tanto, pois que parei ao final de 2007. Quero crer que contei com o auxílio luxuoso do meu amor pela profissão e da escola e seus setores disciplinares priorizando o diálogo.

Mas houve uma vez um verão em que precisei chamar determinada mãe para uma conversinha. Não lembro o sexo do filhote, nem se o motivo era falta de estudo ou má disciplina.

Só sei que, final de expediente, sentada à mesa corrigindo alguns trabalhos, escuto um “boa tarde, professora”. Levanto a cabeça para responder e vejo adentrar o recinto uma mãe de… quimono. Sim, quimono, havaianas e suor, muito suor. Meio aberto, o uniforme deixava à mostra seu pescoço e seu plexo “de responsa” . Os braços não ficavam totalmente abaixados. A marrenta criatura ainda era faixa marrom, ou seja, estava a um golpe da preta. E se a sparring fosse eu?

Pedi que sentasse, por favor, e ela o fez. Só que… em cima da carteira. E, balançando as pernas musculosas, mandou um direto: “Qual é o problema?”. Confesso que não me intimidei. Apenas respirei fundo por viver tão bizarra situação e apliquei um “Mãezinha, é o seguinte…”.

Acho que aquele diminutivo surtiu efeito de um ippon… Molinha, molinha, ela me ouviu até o final, agradeceu, pulou fora do tatame, ops!, da carteira, e caminhou serena em direção ao corredor da escola, já às escuras.

Sei não… Se a figura não foi contratada para mostrar sua arte em algum seriado de TV, ficou molinha para sempre, uma flor de candura fazendo crochê enquanto pimpolho não chega para estudarem juntos.

Nunca mais tive notícias.