Posts from abril, 2014

A incompetência dos santos

 

           Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Quando desaba uma tempestade furiosa, com raios e trovões, invocam-se Santa Bárbara e São Jerônimo. Não se invoca, por exemplo, para esses casos, Santa Teresinha, porque não é da sua área. E sou de crer que os próprios santos, segundo a jurisdição celeste, se invocados para o que foge à sua especialidade, dão-se por incompetentes. Enviam o pedido, ou a súplica, para o santo ou a santa cuja competência é reconhecida. E pode ser que a exceção de incompetência seja também arguida; mas por quem?

Santo Antônio é tido como o santo casamenteiro. Não se dirigem  a ele senão aqueles ou aquelas que querem casar-se e não encontraram parceiro ou parceira. E se ele não os atende, bota-se a sua imagem de cabeça para baixo.

Uma rádio de Ribeirão Preto, todos os dias, repete a oração a São Jorge. A oração até que é muito bonita, mas sabe-se que São Jorge foi cassado pela Igreja Católica, que sustenta que ele nunca existiu. Creio que este expurgo foi uma grossa tolice. São Jorge continua, com a sua lança, e montado em seu cavalo branco, a combater o dragão, na Lua. O povo nunca deixou de acreditar nele, na sua bravura.

No sincretismo religioso que domina a nossa crença, Nossa Senhora da Conceição é celebrada, e as baianas do candomblé a tem como Iemanjá, e vão até o mar atirar-lhe coroas de flores, para festejá-la.

Mas quantas feições tem a Virgem Maria, desde a Nossa Senhora Aparecida? 

Grande coisa seria alguém descobrir um santo até então desconhecido por todos. Pois eles devem existir, embora não se saiba deles 

A religião faz parte da nossa intimidade, da nossa infância. As regras para ela nunca deveriam ser absolutas. E assim como o Soldado Desconhecido, sepultado no Arco do Triunfo, em Paris, haverá uma multidão de santos desconhecidos.

Por isso, há também o Dia de Todos os Santos.

A cada minuto, entra uma alma no céu. Eu até acho que o inferno é que está despovoado, ou que, se existe, não funciona, como quer Murilo Mendes.

Deus não condena. Nós é que nos condenamos a nós mesmos. Mas pode ser que um dia também nos perdoemos.

 

“Sebastian” (Gilberto Gil / Milton Nascimento), com os dois

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=xUCJd1au5AM&hd=1[/youtube]

 

 

 

Cidade Cinza

 

                Bell Gama

bell gama

 

 

 

 

 

 

 

Para uma menina que estava acostumada a pegar apenas o ônibus Jardim Irajá na esquina de casa, ir para o inglês no centro de Ribeirão Preto e voltar, São Paulo tinha tudo para ser assustadora.

Quando se mora no interior pouco se assusta. Você conhece as pessoas, a cidade, que horas o vizinho chega em casa, quem é a melhor doceira da cidade, onde comprar o uniforme da escola e quem traz coisas do Paraguai.

Cheguei em São Paulo em 1998. Eu não achava, mas era uma adolescente. São Paulo me fez mulher. Aqui trabalho, me apaixonei, desapaixonei. Aqui comprei minha casa e fiz meus amigos. Daqui fui para o mundo e voltei e vou e volto ainda repetidas vezes.

Hoje acordei às 8 horas da manhã para atravessar 11 quilômetros em uma hora. Tempo até que bom para uma sexta-feira. Antes de pegar a alça para a Avenida 23 de maio, me deparei mais uma vez com o mural dos Gêmeos, Nina e Nunca. Tirei uma foto, postei no Instagram.

A imagem do mural que vi tantas vezes ficou rondando a minha cabeça e me fez alugar o filme “Cidade Cinza” que conta a história de quando o mural foi apagado em 2008. Escrevo esse texto ainda com os créditos do filme subindo em minha tela. Ele conta brilhantemente a luta da arte contra o concreto.

Quando me mudei para São Paulo recebi muitas recomendações. Diziam-me que eu seria assaltada, que não poderia andar sozinha, que pegar transporte público era impossível e que criar uma família em São Paulo era uma coisa de louco.

Mas no meio de tanta contraindicação me encontrei. Todos os dias, olho para a minha janela que dá de frente para tantas outras janelinhas e vejo vida. Ouço crianças rindo, cachorros latindo, o cara do sorvete que passa assobiando todo dia às 5 horas, tem o sino da igreja e lá no fundo ouço um barulho da televisão de alguém. Não estou sozinha.

Não sei se eu mudei ou se foi a cidade. Não sei se São Paulo está mais corajosa ou eu. Mas nos últimos tempos, desde que decidi vender meu carro e comprar um CEP, assumi São Paulo para mim. Participei de manifestações, vou a eventos gratuitos, promovo junto com amigos um bloco de carnaval, as feiras de rua viraram um dos meus programas preferidos e privilegio todos os shows de rua possíveis.

Engoli o medo e parei de chamar o meu vizinho, o “Minhocão” de “Faixa de Gaza”. Calcei os tênis e o tomei como minha pista de corrida. Todas as noites, divido o espaço com alguns mendigos, mas também com outros tantos paulistanos que encaram o centrão às 9h30 da noite.

Em algum momento decidi: ou São Paulo é minha ou é do medo.

Ao assistir “Cidade Cinza”, percebi que os grafiteiros fazem o mesmo há muito mais tempo. Mesmo tendo sua obra de arte de mais de 700 m2 e tantas outras apagadas por uma horrorosa tinta cinza, eles continuam, refazem, repintam e marcam permanentemente essa cidade que faz de tudo para ser bonita.

Fiquei triste ao ver a politicagem em torno do mural. Enquanto o Sr. Kassab pousava para fotos e um bispo — que não sei por que estava no filme — “benzia” o mural e tantos outros secretários faziam cena, os artistas ficaram ao fundo.

Na minha São Paulo eles estão na frente, protagonistas, e agradeço todos os dias por enfeitarem meu caminho.

 

grafite Bell

 

“São Paulo, São Paulo”, com o Premê (Premeditando o Breque)

 

 

 

 

Rectificar é preciso

 

       

         Selma Barcellos

 Selma-no-Jardim-de-Luxumburgp

 

 

 

 

 

 

 

 

RECTIFICAR É PRECISO

 

Carta do leitor Abel Passos, da cidade do Porto, enviada para o jornal português “Diário de Notícias”:

 

Os Hiper e a língua portuguesa 

“Não raras vezes as grandes superfícies, que basicamente comercializam produtos alimentares, surpreendem com erros de português nos escaparates […]. Falo concretamente de uma loja instalada num centro comercial da Senhora da Hora […]. Nessa loja, em duas palavras há três erros ortográficos: “brôa”, em vez de “broa” e “broculo”, em vez de “brócolo”. E nem atendem aos reparos, solicitando a rectificação, formalizados, há cerca de dois meses, em impressos. Em vão, até hoje!”

 

Que delícia… É isso aí, leitor. Carinho com o idioma. Gostamos nós e seu conterrâneo, o imenso Pessoa de “minha pátria é a língua portuguesa.”

Deixe estar, Sr. Abel, que se os problemas insolúveis se resumissem a chapeuzinhos e grampinhos roubados – sobretudo após a controversa reforma ortográfica -,  nossas pátrias estariam salvas.

Vale um toque? Se o senhor, atento observador das normas da língua, cogitar ancorar sua caravela neste lado do oceano em que me encontro, mantenha distância dos improvisos presidenciais, falas e blogues de candidatos, livros de senadores, cartilhas didáticas distribuídas, exames nacionais… Ou considere a possibilidade de passar a estada enviando cartas. Está feia a coisa, caro Abel. Como apanha a última flor do Lácio…

E apareça, se lhe aprouver. A blogueira adora uma prosa lusa. Bastante trazer um vinho do seu Porto. Eu entro com as broas de Minas.

 

glúten

 

 “Orora Analfabeta” (Gordurinha / Nascimento Gomes) com Jards Macalé

 

 

 

Aprendendo a jogar

 

 

 

“Aprendendo a jogar” (Guilherme Arantes), com Elis Regina

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Cc74HeTP_fo&hd=1[/youtube]

 

 

 

Jogo

 

       Adalberto de Oliveira Souza

 Adalberto

 

 

 

 

 

 

                                                              JOGO

 

 

                                               Cada coisa no seu lugar,

                                               cada um no seu quadrado,

                                               Preparação constante

                                               de um castelo de paixões,

                                               de restrições,

                                               de reconsiderações,

                                               para um eterno despertar

                                               Ou para um partir eterno.

 

                                               Cada gesto no seu momento

                                               com significações evidentes,

                                               alvíssaras de esperanças,

                                               para marcar o momento

                                               e usufruí-lo.

 

                                                Nem tudo se assemelha ao que

                                                realmente é.

                                                Nada é tão enganoso

                                                quanto a aparência.

                                                No entanto, às vezes,

                                                se acerta.

 

xadrez

 

 

 

Uma canastra só de curingas

 

          Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

― O ilustre e ilustrado amigo pode me dar uma explicação?

― Depende. Se é para explicar o que é a vida, não posso. Pergunte a um morto.

― Mas os mortos não falam.

― Falam sim. Falam o hungarês, as línguas mortas, como o latim, e algumas outras.

― Então eu devo aprender hungarês para falar com um o morto?

― Se ele só falar o hungarês, é claro. Mas se ele não fala hungarês, mas só alemão, o senhor deve aprender o alemão.

― E como é que eu vou saber a língua que um morto fala, para falar com ele?

― Vá aprendendo as línguas.

― Ora, são centenas de línguas…

― São. Mas quando o senhor souber todas elas nem precisa mais falar com morto nenhum, porque saberá também o que é a vida.

― Quer dizer que as línguas, todas as línguas sabidas é que me explicariam o que é a vida?

― Já lhe disse quem quando o senhor souber todas elas não precisará mais saber o que é a vida.

― Por quê?

― Porque o senhor também já estará morto. E os mortos não precisam mais saber o que é a vida.

― Como é que o senhor sabe?

― Também já lhe disse que não sei.

― O senhor é muito radical. Não pode ao menos me dar um palpite?

― Palpite para o jogo-do-bicho? Isso, qualquer um pode ter.

― Não, um palpite que acerte no milhar.

― Então o senhor não quer saber o que é a vida, mas quer é ficar rico. E, se ficar rico, não precisará mais saber o que é a vida.

― Pelo que me diz, a vida é um jogo…

― Um jogo, mas também é preciso saber blefar. Vá blefando que um dia o senhor arrebenta a banca.

― Mas para jogar e blefar é preciso que haja outro jogador, ou outros jogadores.

― Sim, precisa. A vida são os outros. Nós mesmos, sozinhos, não somos nada. Os outros é que dão as cartas. E, olhe, há cartas marcadas, e fraude.

― O senhor é muito pessimista.

― Até que não sou tanto assim. Continuo jogando. Um dia, talvez, eu faça uma canastra só de curingas.

 

 

“Acertei no milhar”  (Wilson Batista / Geraldo Pereira), com Moreira da Silva

 [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=2eOpqjyjX6I&hd=1[/youtube]

 

 

 

Mentiras de verdade

 

 

“Mentiras de verdade” (João Bosco / Aldir Blanc), com João

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=pfTkinmEzkA&hd=1[/youtube]

 

 

Assoviei, fingi à beça

Fiz promessa e o amor não some

Criei um muro e a mesma fome

Morde os braços do adeus

Com a boca eu me despedi

Minhas mãos desdisseram: não, não

Mentira, foi tudo mentira

Você me enganou

 

Verdade, foi tudo verdade

Eu hoje admito:

Somos um mito, sim

Maldade e carinho

Ternura sem fim

Num laço

Coleira de cetim

Quero esquecer de mim

Ser mais você, menos do que eu…

Verdade e mentira que o amor entre nós reviveu

— E um breque é coisa nossa num samba-canção porque…

 

 

 

Mentiras cor-de-rosa

 

 

 

“Mente ao meu coração
Mentiras cor-de-rosa
Que as mentiras de amor
Não deixam cicatrizes
E tu és a mentira mais gostosa
De todas as mentiras que tu dizes”

 

 

“Mente ao meu coração” ((Francisco Malfitano / Pandiá Pires), com Paulinho da Viola

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=WrcgqK82DsE[/youtube]

 

 

 

A ex-colinha

 

         Selma Barcellos

Selma-no-Jardim-de-Luxumburgp

 

 

 

 

 

 

 

 

Queridos dinos, como é que vocês colavam? Escrevendo as fórmulas na palma da mão, na borracha, na carteira, em tirinhas de papel guardadas no estojo? Pescoçando a prova do colega? Observando os movimentos codificados do gênio da turma que, coitado, parecia sofrer de espasmos nervosos?

Quem nunca deu uma coladinha… Gerações. Há pouco, arrumando relíquias didáticas na estante, caíram “lembretes” do livro de Química do filho… Cheguei a ouvir sua voz adolescente, belo dia, depois de copiar trocentas vezes uma fórmula na  tentativa de reduzir a letra: “Já decorei essa porrrrcaria!”.

Mas o fato é que a cola perdeu, digamos, a “inocência” primal… Ficou high-tech, sofisticou-se e passou a representar má-fé, picaretagem, trama, golpe. Cultura nefasta a ser realmente combatida. Imaginem que mascar chiclete pode disfarçar a conversa em minicelular com um cúmplice fora da sala, uma caneta pode fotografar a tela da prova e por aí vai.

Li que a University of Central Florida, por exemplo, já declarou guerra  à “evolução da espécie”. Da sala de monitoramento (aqui), um fiscal acompanha os gestos do aluno ao computador, direciona o zoom da câmera para o indivíduo e grava o “crime” em CD. Papel de rascunho? Com data estampada e favor devolver à saída.

Segundo o reitor, em 64 mil exames houve apenas 14 casos suspeitos. Sua Magnificência só não contava com a figuraça que, na contramão da tecnologia, supertatuou o braço e “inseriu informações” em sua body art.

É flórida… Ô raça.

 

 

 

 

 

A vida é lupiciniana…

 

 

 

fabianacozzacapacd

“Lupiciniana” (Wilson das Neves / Nei Lopes), com Fabiana Cozza

 

 

Logo agora que a senhora da paz

Virou minha senhora

Uma tal de saudade batendo lá fora

Chamou pelo meu nome num samba canção

 

O que é que eu faço, se for abrir a porta estou

Dando mal passo

Mas eu não tenho veias nem nervos de aço

E quero te falar de todo coração

 

Moribundo vim morar nessa casa por detrás

Do mundo

Pra viver mergulhado num sono profundo

Sem querer mais saber o que é ter um amor

Meu senhor

 

Mas um dia a senhora da paz

Prima-irmã da alegria

Veio e se aboletou na cadeira vazia

E curou meu desejo de morte ou de dor

 

Indeciso indaguei à senhora o que era preciso

Pra eu manter-me de pé sem perder o juízo

Sem ter medo ou remorso, ela disse-me assim:

É o outono, mais um velho palácio que achei no

Abandono, já tem outra rainha sentada no trono

E o tempo da saudade já chegou ao fim

 

Não engana, diz a ela que a vida é ‘lupiciniana’

E carregar o manto de ex-soberana

Eu não vou nem que o mundo caia sobre mim