Posts from dezembro, 2014

Poema do Menino Jesus

 

 

 

 

POEMA DO MENINO JESUS (Alberto Caeiro / Fernando Pessoa)

 

(excerto, como dito por Bethânia)

 

Num meio-dia de fim de primavera eu tive um sonho como

uma fotografia: eu vi Jesus Cristo descer à Terra.

Ele veio pela encosta de um monte, mas era outra vez

menino, a correr e a rolar-se pela erva

A arrancar flores para deitar fora, e a rir de modo a

ouvir-se de longe.

Ele tinha fugido do céu. Era nosso demais pra

fingir-se de Segunda pessoa da Trindade.

Um dia que Deus estava dormindo e o Espírito Santo

andava a voar, Ele foi até a caixa dos milagres e

roubou três.

Com o primeiro Ele fez com que ninguém soubesse que

Ele tinha fugido; com o segundo Ele se criou

eternamente humano e menino; e com o terceiro Ele

criou um Cristo eternamente na cruz e deixou-o pregado

na cruz que há no céu e serve de modelo às outras.

Depois Ele fugiu para o Sol e desceu pelo primeiro

raio que apanhou.

Hoje Ele vive na minha aldeia, comigo. É uma criança

bonita, de riso natural.

Limpa o nariz com o braço direito, chapinha nas poças

d’água, colhe as flores, gosta delas, esquece.

Atira pedras aos burros, colhe as frutas nos pomares,

e foge a chorar e a gritar dos cães.

Só porque sabe que elas não gostam, e toda gente acha

graça, Ele corre atrás das raparigas que levam as

bilhas na cabeça e levanta-lhes a saia.

A mim, Ele me ensinou tudo. Ele me ensinou a olhar

para as coisas. Ele me aponta todas as cores que há

nas flores e me mostra como as pedras são engraçadas

quando a gente as tem na mão e olha devagar para

elas.

Damo-nos tão bem um com o outro na companhia de tudo

que nunca pensamos um no outro. Vivemos juntos os dois

com um acordo íntimo, como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer nós brincamos as cinco pedrinhas no

degrau da porta de casa. Graves, como convém a um DEUS

e a um poeta. Como se cada pedra fosse todo o Universo

e fosse por isso um perigo muito grande deixá-la cair

no chão.

Depois eu lhe conto histórias das coisas só dos

homens. E Ele sorri, porque tudo é incrível. Ele ri

dos reis e dos que não são reis. E tem pena de ouvir

falar das guerras e dos comércios.

Depois Ele adormece e eu o levo no colo para dentro da

minha casa, deito-o na minha cama, despindo-o

lentamente, como seguindo um ritual todo humano e todo

materno até Ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma. Às vezes Ele acorda de

noite, brinca com meus sonhos. Vira uns de pena pro ar,

põe uns por cima dos outros, e bate palmas, sozinho,

sorrindo para os meus sonhos.

Quando eu morrer, Filhinho, seja eu a criança, o mais

pequeno, pega-me Tu ao colo, leva-me para dentro a Tua

casa. Deita-me na tua cama. Despe o meu ser, cansado e

humano. Conta-me histórias caso eu acorde para eu

tornar a adormecer, e dá-me sonhos Teus para eu

brincar.

 

 

 

Aqui dentro

       

         Selma Barcellos

Selma (perfil)

 

 

 

 

 

 

 

Como diziam os antigos, é batata. O ritual de enfeitar o pinheiro do Natal de hoje, me traz a sala de ontem e a voz dela:

— Chega de correr! Olha a cristaleira! Agora vão lá pra fora que preciso desmontar os lustres!

Lá fora era um quintal assim de árvores. Bela tarde, ao chegarmos os três do último dia de aula, para nos premiar pelo boletim e celebrar as férias, ela havia prendido com palitos e linha um monte de goiabas nos galhos. Surpresos com o pé “carregadinho” e ansiosos por comê-las, nem percebemos.Valia tudo para nos ver felizes…  Ô, mãe.

A limpeza dos lustres correspondia, digamos, ao lançamento dos CDs de Roberto Carlos: enfim, chegara o Natal. Com gestos calmos, meticulosos, ela desmontava peça por peça, banhava-as numa bacia sobre a mesa forrada com cobertor, secava uma a uma, e as olhava contra a luz. Reverberavam. (Hoje sei que o brilho era dela.)

Apesar da bendita cristaleira, era aconchegante aquela sala de sancas desenhadas, piso de parquet enceradindo, pequenas colunas de mármore, tapeçaria reproduzindo cena das arábias do pai, piano com metrônomo e partituras empilhadas…

Ele, com seu sotaque de Chalita, também arregaçava as mangas: começava o preparo dos disputados ataif – pastéis árabes de massa de crepe, recheados com nozes, amêndoas, avelãs, e regados com calda de água de laranjeira. _  Selmínia, vem brovar bastel!  Ô, pai.

Cadê tudo, hein? Onde o avental todo sujo de ovo, a máquina de costurar minhas fantasias, o Studebaker de passear aos domingos, a chuvarada com a gente soltando barquinhos, o balanço da varanda, aquela sala, nossa casa sempre branca…

Só sei dos pilares. E dos barquinhos.

barquinhos