Poema do Menino Jesus

 

 

 

 

POEMA DO MENINO JESUS (Alberto Caeiro / Fernando Pessoa)

 

(excerto, como dito por Bethânia)

 

Num meio-dia de fim de primavera eu tive um sonho como

uma fotografia: eu vi Jesus Cristo descer à Terra.

Ele veio pela encosta de um monte, mas era outra vez

menino, a correr e a rolar-se pela erva

A arrancar flores para deitar fora, e a rir de modo a

ouvir-se de longe.

Ele tinha fugido do céu. Era nosso demais pra

fingir-se de Segunda pessoa da Trindade.

Um dia que Deus estava dormindo e o Espírito Santo

andava a voar, Ele foi até a caixa dos milagres e

roubou três.

Com o primeiro Ele fez com que ninguém soubesse que

Ele tinha fugido; com o segundo Ele se criou

eternamente humano e menino; e com o terceiro Ele

criou um Cristo eternamente na cruz e deixou-o pregado

na cruz que há no céu e serve de modelo às outras.

Depois Ele fugiu para o Sol e desceu pelo primeiro

raio que apanhou.

Hoje Ele vive na minha aldeia, comigo. É uma criança

bonita, de riso natural.

Limpa o nariz com o braço direito, chapinha nas poças

d’água, colhe as flores, gosta delas, esquece.

Atira pedras aos burros, colhe as frutas nos pomares,

e foge a chorar e a gritar dos cães.

Só porque sabe que elas não gostam, e toda gente acha

graça, Ele corre atrás das raparigas que levam as

bilhas na cabeça e levanta-lhes a saia.

A mim, Ele me ensinou tudo. Ele me ensinou a olhar

para as coisas. Ele me aponta todas as cores que há

nas flores e me mostra como as pedras são engraçadas

quando a gente as tem na mão e olha devagar para

elas.

Damo-nos tão bem um com o outro na companhia de tudo

que nunca pensamos um no outro. Vivemos juntos os dois

com um acordo íntimo, como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer nós brincamos as cinco pedrinhas no

degrau da porta de casa. Graves, como convém a um DEUS

e a um poeta. Como se cada pedra fosse todo o Universo

e fosse por isso um perigo muito grande deixá-la cair

no chão.

Depois eu lhe conto histórias das coisas só dos

homens. E Ele sorri, porque tudo é incrível. Ele ri

dos reis e dos que não são reis. E tem pena de ouvir

falar das guerras e dos comércios.

Depois Ele adormece e eu o levo no colo para dentro da

minha casa, deito-o na minha cama, despindo-o

lentamente, como seguindo um ritual todo humano e todo

materno até Ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma. Às vezes Ele acorda de

noite, brinca com meus sonhos. Vira uns de pena pro ar,

põe uns por cima dos outros, e bate palmas, sozinho,

sorrindo para os meus sonhos.

Quando eu morrer, Filhinho, seja eu a criança, o mais

pequeno, pega-me Tu ao colo, leva-me para dentro a Tua

casa. Deita-me na tua cama. Despe o meu ser, cansado e

humano. Conta-me histórias caso eu acorde para eu

tornar a adormecer, e dá-me sonhos Teus para eu

brincar.

 

 

 

Um comentário

  1. André
    18/12/14 at 21:34

    É simplesmente emocionante ouvir Betânia declamando essa pérola do Fernando Pessoa.

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