Annibal Augusto Gama
Tendo sido batizado na Igreja de Nossa Senhora Aparecida, aos três anos, sendo meu pais o Doutor Ciríaco André de Matos Pereira e Dona Mariana Correia Matos Pereira, padrinhos o Cavalheiro Fidalgo Tomé de Abreu e Albuquerque e sua mulher Dona Carlota Figueiredo de Albuquerque, oficiante o Padre Domingos da Santa Fé, tornei-me católico, apostólico romano, por força do compromisso que em meu nome fez a Deus o meu padrinho.
Até os quatro anos, não pensei em Deus nem na sua corte de anjos e santos. Até que comecei a ouvir os trovões e o raios, tão abundantes em nossa cidade, que abalavam nossa casa e faziam minha mãe ir acender velas para Santa Bárbara e São Jenônimo, exclamando, aterrada,“Deus nos acuda, é o fim do mundo!”
Comecei então a saber que Deus, ainda que nos mandasse trovões e raios que te partam, ao mesmo tempo nos socorria e acudia. E que havia também, ao seu lado, os santos e as santas, intermediários das nossas súplicas. Também, aos sete anos, levaram-me a ser catequizado, para mais tarde receber a Primeira Comunhão.
— Crês em Deus? — perguntava-me a minha catequizadora, uma senhora gorda, de bandós e cabelos brancos, e eu respondia: “Sim, creio”. E ela prosseguia: “Amarás a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Honrarás pai e mãe. Não cobiçarás a mulher do próximo.”
Ensinou-me ela, também, o Pai Nosso que estais nos céus, a Ave Maria, o Credo, e outras orações. E eu devia, pela manhã, ao despertar e à noite, ao ir dormir, além de escovar os dentes, ajoelhar-me à beira da cama e rezar algumas orações. Por outro lado, a Santíssima Trindade, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, representados por um triângulo equilátero, me perturbava. E ainda mais quando, já na escola, eu via o triângulo equilátero dentro do qual havia um olho aberto e a legenda “Deus me vê”. Deus me via todo o tempo, era um espião.
Terror e amor…
Tomei conhecimento também do Diabo, que era um sujeito muito safado, com chifres, rabo, pés de cabra e fedendo a enxofre.
Não obstante, meu Pai, quando estava encolerizado, costumava dizer: “O Diabo que te carregue!”
Os nomes sujos eram proibidos e, se acaso os pronunciássemos, minha Mãe mandava: “Vá lavar a boca, menino!”, e aplica-me um beliscão. Na casa, o único que não era mandado lavar a boca, nem era beliscado, era o meu Pai.
Na abóboda pintada da Igreja, eu via Deus barbudo, o seu filho Jesus, e o Espírito Santo, que era uma pomba. E nuvens, profetas, santinhos e santarrões, além do altar-mor e dos nichos com as imagens dos e bem-aventurados.
Cantava-se, em coro:
“No céu, no céu,
Com minha Mãe estarei…”
Ora, minha Mãe estava em casa, ou ali sentada, num banco, coberta por um véu negro.
As procissões da Semana Santa, ou de outros dias santificados, saiam da porta da Igreja e o povo desfilava pelas ruas, atrás dos andores carregados por pessoas vestidas de opa, com a Banda de Música atrás. O turíbulo, o cheiro de incenso, na nave, as beatas ajoelhadas, os sinos batendo.
De costas, o padre murmurava:
— Introibo ad altarem Dei.
E o coroinha completava
— Ad Deum qui laetiificat juventutem meam.
Na outra calçada, de outro lado da rua, um pouco acima da nossa casa, uma menina me olhava e eu olhava a menina.
Nota do Editor
A menina na outra calçada era minha mãe, que um dia, disputando uma cadeirinha com o menino, arranhou-lhe fundo o rosto, deixando uma cicatriz.
Passados muitos anos, o menino já moço voltaria à cidade da infância, de onde se mudara. Acabava de ter um trabalho premiado na “Semana Euclidiana”, realizada em São José do Rio Pardo, e aproveitava para passar alguns dias na Guaxupé natalícia e rever amigos e familiares.
Reencontrou-se então com a menina que o havia ferido, também já moça.
Soube, então, que a marca que ela lhe deixara seria para sempre.
(Os nomes no primeiro parágrafo são fictícios)
Gama , que delícia de texto! Seu Annibal sempre em grande forma. Como é sempre gostoso apreciar o talento de toda esta família. Beijão
Bem saboroso texto e, ainda mais, e sobretudo porque mostra as cicatrizes que a vida vai deixando nas pessoas.
Muito do meu agrado.
Ah, Dr. Annibal, as aulas de catecismo ainda pequenina… A professora de sorriso horrendo tinha voz de trovão e um olhar que me fulminava de medo. Quantas vezes me fez apagar aquele triângulo equilátero que inaugurava o caderno e era pecado não estar perfeito.
Algo me diz que ela jamais encontrou um menino do outro lado da rua…
gama, às vezes me questiona minha falta de religiosidade. fui criado em família católica. minha irmã é que se pode chamar de carola, seus filhos até hoje frequentam a missa. Eu confesso que abandonei…vou fazer um entendimento “meu”, a cicatriz acidentental que sua mãe carrega na vida comparo com a oração não citada a “Salve Rainha” essa me deixou uma marca e até hoje, quando necessito de um reflexão é a ela que recorro.
“salve rainha
mãe misericórdia
vida doçura e esperança, nossa salve. (…)
mesmo com o meu ceticismo, essa oração em deixou uma marca…
quando nossa turma do colégio se reúne cantamos o hino de Santo Agostinho, e o “tantum Ergo”. São meus momentos e religiosidade e ou quando entro numa Igreja e sem rezar peço PAZ. bonita crônica precisava ouvir o que li.
Antonio, sobre a ‘Nota do Editor’ (uma delicadeza!): aos 14 anos, Sérgio representou o Estado do Rio num concurso sobre Euclides da Cunha, em São José do Rio Pardo. Orgulho imenso.
“O Coração de Euclides” , belo texto dele, foi publicado no Correio Braziliense. Volta e meia ele o lê em conferências. Posso enviar para você e Dr. Annibal?
Selminha, já devia ter enviado!
Aguardamos.
Não sei se meu pai ainda tem o trabalho dele.
Acho difícil. Se tiver, vou dar um jeito de também enviar a vocês.
Beijocas.