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Conversa

 

        Adalberto de Oliveira Souza

 Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

                                                            CONVERSATION

 

                                                Le coin de ta bouche

                                                disait quelque chose.

 

                                                Les deux coins

                                                de ma bouche

                                                répondaient.

 

                                                Je me rendais compte

                                                de ton absence,

                                                quand même,

                                                nous nous sommes appris.

 

 

bocas 4

 

 

                                                           CONVERSA

 

                                               O canto de tua boca

                                               dizia alguma coisa.

 

                                               Os dois cantos

                                               de minha boca

                                               respondiam.

 

                                               Eu percebia a tua ausência.

                                               Ainda assim,

                                               nos apreendemos.

 

 

 

Suarabácti

 

         Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1

 

 

 

 

 

 

Não sei onde ouvi ou li esta palavra, nem tinha à mão, na hora, um dicionário, mas ela ficou me martelando na cabeça. Parecia o nome de alguma doença inconfessável. Até que dei com o Prof. Lopes, um sábio, na porta da Farmácia Modelo, e lhe perguntei o que era ou queria dizer o tal de suarabácti,

O professor olhou para o céu, e depois me bateu a mão no ombro:

─ Cáspite! Faz mais de vinte anos que não ouço ninguém falar em suarabácti! Onde é que você encontrou a palavra?

Provavelmente, os antibióticos haviam acabado com o suarabácti, como acabaram com a gonorréia.

Mas não era nada do que eu supunha, e o professor explicou:

─ Suarabácti, meu caro amigo, é uma alteração fonética que consiste na intercalação de uma vogal para desmanchar um grupo consonantal. Diz-se também “anaptixe”. Por exemplo; “adevogado”, por advogado, “peneu”, por pneu, “taramela”, por tramela.

Ora, ora…

Agradeci ao professor e fui saindo. E ele permaneceu rindo, na porta da farmácia.

Fui para o Bar e Bilhar do Nilo, entrei, e experimentei no Elesbão, que é um cretino:

─ Você não tem vergonha na cara, seu pervertido? Fazer suarabácti no bordel da Ambrosina…

Todos olharam reprovativamente para o Elesbão, e ele pegou o taco, ameaçadoramente.

─ Repita o que está dizendo que lhe parto a cara!

─ Pois pergunte antes ao Professor Lopes, foi ele quem me disse, na porta da Farmácia Modelo.

Ele estava com as mangas da camisa arregaçadas, e eu tirei o paletó.

─ Bom será que não lhe caia a língua, depois do suarabácti. Se eu fosse você, ia logo tomar uma dose cavalar de antibiótico, porque a coisa é grave e contagiosa. E não me encoste, antes de se tratar.

Todos se afastaram do Elesbão, e ele empalideceu.

─ Vou já falar com o Doutor Magalhães, e depois volto para lhe quebrar a cara. 

─ Não é preciso, seu bestalhão, porque eu já tenho o antibiótico no bolso. Suarabácti é meter uma vogal num grupo consonantal, para desfazê-lo. “Adevogado”, por advogado, “peneu”, por pneu. 

Todos caíram na gargalhada. Ainda assim, o Elesbão correu atrás de mim, com o taco na mão, até a porta do bar.

─ Engraçadinho! Moleque! Vá gozar a mãe!

Quando ele se acalmou, retornei ao bar e perguntei ao pessoal:

─ Como é, gente, vamos ou não vamos jogar uma partida de sinuca?

De noite, na Ambrosina, sugeri à Loreta:

─ Vamos fazer um suarabácti? 

Ela se ergueu da cadeira, os olhos fuzilando.

─ Quem é que você pensa que eu sou? Seu descarado, seu tarado! Não me encoste a mão, e saia já daqui!

Foi um custo convencê-la que ela mesma praticava o suarabácti todos os dias.

A coisa se espalhou, e todos vinham perguntar-me que estória era aquela do suarabácti. Mas alguns ainda continuam duvidando. 

O Prof. Lopes me disse:

─ Pelo menos, você divulgou o suarabácti. Mas tenha cuidado, não exagere, não deturpe a língua, que é preciosa.

 

suarábacti

 

 

 

Certas coisas…

 

     Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Por que viver vale a pena?” – indaga-se o autor da crônica com que me delicio na rede da varanda, boxers deitados ao lado, labradora empurrando minha mão com o focinho para ganhar cafuné. E responde o jovem cronista: por Mahler, Millôr, Manhattan, Peter Sellers, vinhos do 12ème, mulher “na primeira vez em que entrega sua nudez e seu sorriso” e por aí vai.

Fecho os olhos e penso igualmente em certas coisas que fazem valer a pena… Como o quê? Ora, os poemas do Pessoa, as veredas do Rosa, o esticador de horizontes do Manoel de Barros. Quixote. Quase toda a obra de Fellini, o Mastroianni, a nossa Fernanda, meus cult adolescentes “Um Homem e uma Mulher” e “Breakfast at Tiffany’s” – trilhas sonoras cantadas de cor. Aquela cena do Pacino dançando “Por una cabeza”… Aliás, tangos.

E Paris, “Those Were the Days” em Londres e “Prendi questa mano, Zingara” em Florença – aos 18. Sarah Vaughan, Sinatra, Tom&Vinicius, Tom&Jerry. Chico como encantado ao lado meu e as propostas do Roberto. A bateria da Mangueira. Paul McCartney no Maraca, Anna Netrebko no Waldbühne. “Nessun dorma”. O intermezzo de “Cavalleria rusticana”, a doçura do entreato de “Carmen”… Braços e pernas à perfeição do cisne de Plisetskaya.

Ainda agora, os mistérios de Sintra e pedalar por Cascais, o boardwalk de Santa Monica, ouvindo a percussão dos que sobraram de Woodstock e tomando Erdinger gelada… Bolinho de bacalhau do Seu Antonio. Búzios meio vazia, comendo cavaquinha grelhada no entreposto dos pescadores ao cair da tarde. Bombons trufados da Godiva. Mergulho no mar com a tal sensação térmica de 45º (mas é bom parar por aí). Sol se pondo em Itacoatiara…

A beleza dos dias sob a luz do outono. Aquela noite em que família e amigos, enrolados em mantas, deitamos todos no deck da cabana no Yosemite para observar o céu mais incrível de nossas vidas. As gargalhadas gostosas dos alunos com minhas gracinhas. O último retoque antes de assinar a tela. A expressão feliz do filho vendo sua noiva entrar. O bailado solto com o outro filho e suas dicas de bem viver. Aprender com eles. Chorar de rir. Cansar de dançar.

Não por último, subir ao palco da ABL para receber meu “Oscar” pelo 1º lugar no concurso de redação, 13 mil inscritos… (Nota do Editor: Veja a premiação da Selminha AQUI)

Ah! – e soltar o gogó em “Non, je ne regrette rien”. Glorioso. Meu épico de chuveiro.

 

 

Saudade

 

        Adalberto de Oliveira Souza

 Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

                                                           SAUDADE

 

            A chuva, a bruma,

            aqui e lá,

            um relâmpago

            e a dor se impõe.

 

            Na veia estanca,

            na enxurrada escorre

            a espera

            o tédio.

 

            O que de mim se afasta

            de mim se apossa.

 

 

                                                                       La pluie, la brume,

                                                                       Ici, là et ailleurs,

                                                                       un éclair

                                                                       et la douleur s’impose.

 

                                                                       Dans la veine s’arrête,

                                                                       dans le caniveau glisse

                                                                       l’attente,

                                                                       l’ennui.

 

                                                                       Ce qui s’éloigne de moi,

                                                                       aussi s’empare de moi.

 

torre eiffel na chuva

 

 

                                                                      

Sic Transit Gloria Mundi

 

          Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1

 

 

 

 

 

 

 Suponhamos que alguém pretenda escrever (ou dizer), que a gloria é vã. E alinha as seguintes frases que, substancialmente, significam a mesma coisa:

 

                                    A glória é uma palavra vã.

 

                                    A glória é uma vã palavra.

 

                                    Glória: vã palavra.

 

                                    A Glória é uma vã palavra.

 

                                    A glória nada é.

 

                                    A glória é nada.

 

Destas seis frases, só uma deve ser exata, no seu sentido e estilisticamente, para um bom escritor. E soar mais bem para um leitor sensível.

Qual delas seria?

Isto, os professores não explicam nas suas aulas de língua portuguesa, ou só raros deles explicam. E é uma questão de bom gosto, de sensibilidade.

Vamos tentar fazer a escolha certa e justificá-la.

 Em primeiro lugar, a primeira frase (“A glória é uma palavra vã”) é incomparavelmente inferior à segunda: “A glória é uma vã palavra”.

 Por quê?

 Porque uma palavra vã (da primeira frase) apresenta um encontro vocálico desagradável para um ouvido fino: vra-vã. E a antecipação do adjetivo ao substantivo da segunda frase elimina este encontro vocálico enjoativo.

 Todavia, a terceira frase, para aqueles que se prezam de ser sóbrios de palavras, talvez seja a melhor: Glória: vã palavra. Mais ainda: nela não se achando o artigo definido “a”, generaliza, e abrange toda espécie de glória.

 Na quarta frase (“A Glória é uma vã palavra”), vê-se que se escreveu com maiúscula o substantivo Glória. Ele foi personalizado e pode referir-se não ao substantivo abstrato “glória”, mas a uma moça ou a uma mulher chamada Glória. O que não é o caso, ou é outro caso.

Enquanto isso, a quinta e a sexta frases não são muito expressivas. 

Um escritor vulgar poderia ainda optar por uma frase grosseira: A glória não enche barriga.

Acho que a escolha está feita: a melhor, entre as seis frases é: A glória é uma vã palavra. Ou, sucintamente: Glória: vã palavra.

 Carlos Drummond de Andrade, em seu livrinho póstumo, O Avesso das Coisas, escreve:

 “A glória é o alimento que se dá a quem já não pode saboreá-lo”.

 Não é uma frase muito verdadeira. Porque ele mesmo, em vida e moço, saboreou a glória que merecia.

 Já Valéry dizia, com um dar de ombros, ou com irritação:

 “Je m´en fous de la gloire”.

 Que não traduzo, para não escandalizar.

 

sic-transit-gloria-mundi-

 

 

Grafia

 

Brenno Augusto Spinelli Martins

Brenno e o violão

 

 

 

 

 

 

 

                                                

                                                       GRAFIA

 

                                       Tolisse, o que você dice…

                                       mas melhor ter dizido falando

                                       do que se tivece escrivido.

 

                                       As palavras

                                       não escritas

                                       não machucam o papel.

 

                                       As estrelas

                                       que não brilham

                                       não aparecem no céu.

 

                                       O que fere

                                       o ouvido

                                       não alcança o coração.

 

                                       O que fenece

                                       no olvido

                                       não carece explicação.

 

grafia

 

 

               

      Claudia Pereira

Claudia 2

 

 

 

 

 

 

                                    Sentido!

 

            Como gostaria de livrar-me das palavras.

            Vírgulas, pontos, a letra A

            a B também.

            Todas elas!

            Este exército organizado e incansável.

            Daria um soco no queixo

            uma a uma,

            formando um monte desconexo a minha frente.

            Nocaute!

            Livre destes ecos

            do eco dos ecos

            do penso, não penso,

            da tinta e papel.

            Mas quando vejo,

            lá estão os dois;

            pensamenntos e letras a postos.

            As palavras

            num sinal,

            hup hup hup

            marcham…

            Ser poeta

            é ser soldado das letras.

            (só falta entrar para a Academia).

            Nada disso…

            Ser poeta

            é desmilitarizar as palavras.

 

            Como ocê Brenno

            qui num liga pros ais

            só faiz,

            bem dimais!

 

                       

Bem na fita

 

    Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

Sempre que uma nova ruguinha me diz “oi, prazer” quando olho no espelho, ao acordar, lembro como mantra de uma resposta de Pitanguy em sua milionésima (suponho) entrevista sobre beleza feminina: “Mulher bonita não é a que se vê chegar, mas a que se sente chegar”.

Ufa, a frase do mestre é um alívio. Você se contenta em aplicar o básico filtro solar e ir à academia apenas para não atrofiar e volta correndo para os livros que ama. Para o imprescindível cultivo das delícias do espírito, pois que não há beleza que sobreviva a uma mente emburrecida.

Só que… vaidade, teu nome é mulher. Daqui a pouco, lá está a gente de novo se mirando no espelho, bem de pertinho, dando uma esticadinha no canto dos olhos, no contorno do queixo…

Verdade seja dita, não é fácil olhar com desdém para o que nos revela o espelho, com ar blasé de quem não está nem aí para as rugas que “nos dão dignidade e contam nossa história”. Além do que, é preciso estar atenta e forte para perceber quando não dá mais para sair de cara lavada, cor de boca nos lábios, beliscões nas bochechas para o arzinho corado e que tais.

Na realidade, a mensagem de Pitanguy, não fosse ele um esteta, passa longe de pregar desapego à imagem. Antes, alerta-nos para a indigência cultural que o excesso de vaidade física pode causar e, a reboque, fala de algo que hoje é literalmente assustador: o exagero de certas mulheres em busca da juventude que se foi ou dos padrões impostos de beleza.

Quem ainda não cruzou pelas ruas com certas criaturas desfiguradas por seguidos procedimentos plásticos, sorriso e olhar aprisionados? Aliás, como pode alguém pagar para ficar feia, disforme, perseguindo um formato de lábios que a natureza não lhe deu, que não condiz com o restante de seu  rosto, mas que Angelina Jolie tem e se quer igual?

Criaturas assim ficam ainda mais visíveis nas imensas lojas de departamentos americanas. São elas não apenas as consumidoras vorazes, como também as atendentes que, buscando provar a eficácia de seus produtos para fazer o tempo voltar atrás, transformaram-se, todas, em Angelinas.

Recentemente, numa dessas lojas, notei que a moça que me vendia um simples hidratante, ao terminar de falar cada frase, levava segundos para conseguir fechar a protuberante boca química. Sabe dublagem mal feita, quando a fala acaba e os lábios ainda se movem? Assim. Aquela era das que se vê chegar. Só que antes de entrar.

Por outro lado, quando leio que, nos Estados Unidos, jovens escapam à síndrome do tapete vermelho, ao padrão ditado pela mídia, e elegem a colega Anne Jennings, bela exatamente em sua diversidade, como “Rainha da Escola”, percebo que nem tudo está perdido. Há luz no camarim do fim do túnel…

 

 

(Aqui a rainha Anne, emocionando-nos com seu sorriso escancaradamente feliz)

 

Assim, bem-vindas as mulheres que se fazem vistas e sentidas em suas chegadas, porque corpo e espírito nutridos, saudáveis, informadas, orgulhosas de sua feminilidade, seguras por se saberem bem na fita. Não a que Hollywood quer filmar, mas aquela cuja câmera e direitos autorais elas detêm, em doses equilibradas de sonho e lucidez.

 

 

Entrevista com Pedro Tamen

 

     Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

Estando em Lisboa em janeiro de 1976, veio-me à cabeça entrevistar poetas portugueses, dentre outros procurei por Pedro Tamen, que foi presidente da Fundação Calouste Gulbenkian de 1975 a 2000.  Fui até esta instituição e solicitei uma audiência que me foi concedida com muita cordialidade. Disse, então, que o considerava um dos grandes poetas portugueses e gostaria de falar com ele. Fiz-lhe estas perguntas às quais ele me respondeu com grande gentileza. Conhecia alguns poemas que ele tinha publicado na Revista Colóquio que muito me agradaram. Sabia também que sua estreia literária foi com o livro Poema para todos os dias em 1956. Voltando ao Brasil publiquei esse texto que ora está apresentado em Estrela Binária e lhe enviei a Revista Geratriz na qual foi publicado. Continuei esporadicamente correspondendo-me com ele, enviando-lhe livros e algumas publicações. Ele sempre me respondeu com a máxima gentileza. Depois fiquei sabendo que ele publicara vários outros livros de poesia e traduções para o português de Gabriel Garcia Marquez, Marcel Proust e Gustave Flaubert. Sua obra continuou crescendo. Ele recebeu várias honrarias em Portugal como o Prêmio Literário Inês de Castro e o Prêmio de Poesia Luís Miguel Nava. Hoje, ele é um nome de grande importância no mundo literário português. Vi-o pela última vez fazendo leituras de poemas no Salon du Livre em Paris em 1998,em que homenageavam o Brasil.

 

 

Entrevista com Pedro Tamen, poeta português

 

 Por Adalberto de Oliveira Souza

 

                                         Pedro Tamen

Pedro Tamen (Foto APF) 

 

 

 

 

 

 

 

                                       

 

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Não há montanhas se não há palavras.

Não foge a bala se não há um espaço.

Não sobe o céu se não houver distâncias.

Não cabe o túnel se nunca estão paredes.

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Geratriz: Pedro Tamen, qual a função da poesia?

P. Tamen: A função da poesia é tornar o mundo habitável para os poetas. Respondo como poeta, naturalmente não como leitor. E respondo, por isso, como se perguntasse pela função da respiração, ou porque respiro eu. Escrevo porque necessito de escrever, porque isso é um termo da dinâmica própria da minha vida. Só depois do poema feito lhe posso atribuir finalidades – que alguém consinta comigo e com os avatares do mundo. Mas esse é um processo a posteriori , que nada tem a ver com a causa da eficiência do acto poético.

Geratriz:  O sr. Está satisfeito com o seu papel dentro da literatura portuguesa?

P. Tamen: Não sei bem qual é o meu papel; nem; por isso; se posso estar ou não satisfeito com ele. Sei que tenho o meu caminho próprio, enquadrado numa rede de múltiplas afinidades com outros caminhos que, de uma forma altamente grosseira, poderão formar uma corrente. Corrente que, a sê-lo, se definiria por uma comum exploração das possibilidades (semânticas, sintáticas e outras) da língua, no próprio acto do seu afeiçoamento á linguagem poética.

 

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Escrevo estes versos de grãos de terra na mão; eis a prova.

Tenho a certeza dos passos. Todos temos. Só nos mais diferimos.

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Geratriz: Em Portugal, haja vista a existência de uma maior tradição literária, é possível para os grandes escritores  viver de literatura?

P.Tamen: De um modo geral, não. Não creio sequer que haja um só escritor português que viva exclusivamente da criação literária, embora haja casos poucos de escritores que vivem predominantemente da literatura. Aqui não é a tradição literária que conta, mas o consumo de literatura, que não será maior em Portugal do que no Brasil.

Geratriz: Dentro de um processo histórico, as nossas literaturas, brasileira e portuguesa, foram se desvinculando uma da outra. Não caminharemos para uma desvinculação total.Uma perda de identificação de uma para outra?

P.Tamen: Só na medida em que as vidas dos povos se desvincularem, se desvincularão as literaturas por intermédio da língua. Explico melhor. Brasil e Portugal são povos diferentes, com tradições cultural de raiz comum, mas agora mergulhadas em conjunturas de metas bem diversas. O que lhes  une as literaturas é a língua comum, factor poderosíssimo que comanda a literatura desde dentro, e que desempenha um papel aglutinador que contraria os factores de desagregação da geografia e da vida colectiva. Essa língua será tanto menos comum quanto menos o for a mundividência dos dois povos. E da separação das línguas virá o inevitável afastamento das literaturas.

Geratriz: Através de sua poesia o sr. pretende transformar a sociedade ou apenas e ser o reflexo desta mesma sociedade?

P.Tamen: Eu não pretendo nada mais do que ser eu próprio e vivo, em cima da terra e do papel em branco. E esse eu próprio, que não é nem quer ser ilha, é necessariamente reflexo da sociedade em que é, em que está e em que gostaria de estar Sou o que penso e escrevo o que sou.

 

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Entre cacto e gato há um vaso de versos,

No branco das palavras nasce a lua.

No mais, é mais barulho que varejo

A perna assim, um braço assado ao fogo

Porque eu é que te vejo, que te creio, que te mato, que te morro.

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Assentar bem o papel e interpô-lo entre nós e nós

Sobre o que era largo e fresco e era ontem.

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Geratriz: Qual a relação entre a poesia e a política? (num âmbito geral e particularmente em Portugal)

P.Tamen: O acto poético é um acto político de dois pontos de vista. Enquanto acto repetido e atribuível a um grupo de indivíduos (os poetas, grupo localizável ,na sociedade segundo um dado critério) e enquanto acto público, ou publicado, que se insere no contexto social e nele vai de qualquer modo actuar.O poeta, esse é por definição, e em si mesmo, um fenômeno político, porque é um homem, e que tende, de forma eminente, para a expressão do Homem. Assim, é actuado e actuante, como qualquer homem, mas muito acentuadamente, porque, passivo, é particularmente transparente e, activo, possui meios e armas que se não esgotam no efêmero, Em Portugal viveu-se (vive-se? ) uma Revolução que naturalmente tocou os poetas ao tocar os portugueses. Mas não é de esperar, já, no plano da grande Poesia, resultados imediatos desse impacto, sabendo-se que é de uma lenta e misteriosa sedimentação que o poema surge no mesmo passo em que o homem se transforma.

Geratriz: É destino da Poesia ser um gênero literário nobre. Ou é característica de nossos tempos ser a poesia lida por uma elite intelectualizada?

P.Tamen: Esse é um terreno difícil eriçado de equívocos. Por mim, postulo que não é a poesia que tem de tornar-se “popular”, mas o povo que tem de tornar-se “leitor”. Donde resultam várias consequências, de que apenas salientarei duas:

a) É inerente à arte em geral certo aristocratismo na medida em que esta não é apenas facto de cultura,  mas de sensibilidade a qual, embora se eduque, não pode criar-se do nada e, portanto, generalizar-se.

b) Como a Poesia é, afinal, o próprio poeta, o seu acesso estará tanto mais facilitado a largas camadas quanto o poeta mais intensamente viver integrado nelas e com elas solidário.

Geratriz: Com a reflexão metalinguística, o poeta não corre o risco de afastar-se dos problemas sociais?

P.Tamen: Há caminhos diversos, muitas moradas para os poetas. Os que se dedicam com intensidade à “reflexão metalinguísticas correm efectivamente o risco que aponta, mas não estão sujeitos a qualquer fatalidade desse gênero. Mas, mesmo que se afastem dos problemas sociais, a sua pesquisa predominante nos domínios da linguagem irá fertilizar o terreno onde os outros, os “próximos”, irão, no futuro colher novas armas.

Geratriz: De que maneira o sr. vê o surto literário da América do Sul,nos últimos tempos?

P.Tamen: Depois de um Borges ou de um Guimarães Rosa, conheço mal o surto literário sul-americano. Mas o que conheço chega para admirar muito profundamente a convergência exemplar de um Antônio Callado, um Suassuna, um Cortázar, um Garcia Marquez, etc. Como elemento comum parece-me surpreender uma integração da cultura popular no próprio cerne da literatura e da linguagem, e não a sua exibição como elemento exterior e folclórico.

Geratriz: Em que medida, os últimos acontecimentos políticos portugueses colaboraram para um maior desenvolvimento cultural e artístico?

P.Tamen: Portugal recuperou a liberdade e, com ela, a abolição da censura. Este é um primeiro grau de dignidade para um povo e uma primeira condição de criação. Segunda fase, só muito imperfeita ou fragmentariamente conseguida, é a possibilitação da palavra ao povo, que ele próprio possa dizer quem é aos ouvidos dos intelectuais e dos artistas.

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O morto e o vivo

 

          Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1

 

 

 

 

 

 

 

Quando foi buscar na paróquia a sua certidão de batismo, para casar-se na Igreja, ficou surpreso. Era irmão gêmeo, e o seu irmão havia falecido. Constava, porém, nos registros paroquiais, que o morto era ele, e não o outro. O mesmo aconteceu no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais. Diante de tal problema, devia procurar uma retificação daqueles registros. Isto demandava tempo, advogado, e o mais. 

Sua noiva achou que ele estava era a protelar o casamento. O advogado consultado lhe disse:

— O melhor seria você continuar morto. Morto não tem responsabilidade. Pode fazer o que quiser, e não será punido. Além disso, você pode amigar, ou amancebar-se, que é melhor do que casar. A Constituição atual equipara a amigação ao casamento.

A noiva, porém, repeliu tal sugestão. Queria casar-se de papel passado e vestida de noiva.

Intervieram então o futuro sogro e a futura sogra.

— Olhe aqui — exigiram — você trate de honrar o seu compromisso. Senão, rua! 

As ruas não admitem defuntos passeando por elas. Querem-nos enterrados no cemitério.

A prova de que se está vivo, dá-a os médicos. Mas estes, muitas vezes, se enganam. Que é estar vivo? Há tão variados modos de viver que até hoje não se deu uma explicação conveniente do que é viver.

Seus pais também não puderam dar solução ao caso. Disseram-lhe: 

— Você e o seu irmão eram tão parecidos que às vezes um mamava duas vezes e o outro ficava sem mamar. 

Ele lembrava-se de que quem ficava sem mamar era ele, porque chorava muito, a despeito de se propalar que quem não chora não mama. 

Pareceu-lhe ainda que seus pais preferiam o outro, que não mais lhes dava despesa.

 O noivado rompeu-se.

E como oficialmente continuava morto, foi vivendo sem compromisso nenhum.

A lição é esta.

Viva sem compromissos, sem horários nem honorários. Vá para onde quiser, ou fique, que tudo dá na mesma.

Afinal, de um modo ou de outro, você morre.

O caso dele, contudo, era singular: se morresse, não havia como passar-lhe o atestado de óbito, porque já morrera muito antes.

Ora, ora, viver ou morrer não é a mesma coisa?

Vivos ou mortos, somos todos defuntos. E defunto não tuge nem muge.

defunto 

 

 

 

O su su su do sax

 

Brenno Augusto Spinelli Martins

Brenno e o violão

 

 

 

                                   SAXOFONE AO CAIR DA TARDE

 

                                                                                                  Brenno Augusto Spinelli Martins

 

                                   A tarde cai

                                   como um desmaio…

                                   Ao fundo um som de sax.

 

                                   E a lua vai,

                                   por entre os galhos,

                                   mostrando a sua face.

 

                                   Num brilho breve,

                                   quase invisível,

                                   o espocar de um flash.

 

                                   Num sopro leve,

                                   quase inaudível,

                                   o su su su do sax.

 

 

 

Mandei e-mail pra você (via YouTube), contendo um poema (Saxofone ao cair da tarde), acompanhado de um vídeo como sugestão para a ilustração musical do mesmo.

Trata-se da canção do Ary Barroso “Pra machucar meu coração”, com o João Gilberto e o Tom, e o sax tenor do Stan Getz num improviso genial, que retrata a idéia do poema.

Tenho essa gravação em outras edições (LPs e CDs), mas me despertou a lembrança a reedição dela no sexto volume da coleção do Tom, da Folha, que você também está colecionando, com certeza.

O vídeo do YouTube é meio abafado, mas ouça num aparelho bom, bem equalizado e curta os sopros chiados nos tons baixos do sax do Stan Getz, fazendo su su su…

Nas outras faixas do disco também tem su su su, mas nessa faixa é exemplar.

 

 

stan getz e joao gilberto

  

 Para Machucar Meu Coração – Getz Gilberto

 ”Para machucar meu coração” (Ary Barroso), com João Gilberto e o su su su do sax de Stan Getz