Posts from novembro, 2012

Solitária

 

 

 Amanhã Bell, nossa estrela, estreia idade nova.

Continua com solitária, apesar da legião de amigos e fãs.

Viva ela!

 

 

 

 

 

 

 

 

Estava com solitária. Mas nunca comi carne de porco. Pelo menos não crua, daquelas que professor de biologia fala que faz ter solitária. Era taenia solium ou taenia saginata? Não sei. Também não comi terra. Tenho pavor das histórias das crianças que comem terra, comem tijolo… já ouvi até de gente que come sabonete. Não sou uma delas. Na minha casa nem tem jardim. Aliás, tem. Mas é um jardim para ser visto, não para se lambuzar de terra. Minha mãe nunca permitiu isso. Aliás, não entendi porque nunca ninguém percebeu que eu tinha solitária. Tenho repulsa dela. Tenho vergonha. Acho que nunca mostrei. Acho que nunca falei.

Interpretação simples, disse minha terapeuta. Era a primeira vez que um sonho tão óbvio como esse se manifestava. Por outro lado, nunca tinha tido um sonho tão figurativo. Sempre senti a solitária dentro de mim, mas nunca quis falar dos meus vermes. Agora eles povoavam meu sonho e faziam lembrar o vazio que se instaurava dentro de mim. Não bastava a revolta adolescente, os amores inventados e as deprês de fim de tarde. Agora, o vazio todo tinha uma forma que habitava dentro de mim e consumia vorazmente tudo que me servia de alimento, diet, light ou não.

Saí do consultório com a cabeça em parafuso. Passei na livraria. Encontrei meu diagnóstico. Na página 12 do Dr. Llosa estava “ Traduzindo em imagem, direi que você acaba de fazer algo que, dizem, algumas senhoras do século XIX, preocupadas com a gordura e resolvidas a recuperar uma silhueta de sílfide, faziam: engolir uma solitária. Já lhe aconteceu alguém que carregasse nas entranhas esse abominável parasita?”

Parabéns, Dr. Llosa! Acaba de encontrar. E agora? Linhas à frente ele concluía: “ A vocação literária não é um passatempo, um esporte, um lazer refinado que se pratica nas horas vagas. É uma dedicação exclusiva e excludente, uma prioridade `a frente da qual nada pode passar, uma servidão livremente escolhida que transforma suas vítimas (suas ditosas vítimas) em escravos”.

Nunca tinha encontrado minha vocação ou fugia dela. Passei inúmeras seções terapêuticas falando de emprego, de trabalho até que ela disse: então porque não abandona este emprego? O pior foi quando disse: mas quais são os seus planos? E eu fiquei por dez minutos dizendo as minhas possibilidades de ascensão na empresa quando ela interveio: Acho que não entendeu a pergunta, não perguntei qual o seu plano de carreira. Perguntei: o que você quer fazer da sua vida?

Pergunta difícil… que há anos procurava responder. Sei lá, faço tudo bem, respondia sempre. E ia levando, alimentando a solitária com tudo o que podia ser alimento: baladas, chocolate, homens, viagens… até igreja evangélica eu tentei. Nada satisfazia a maldita!

Agora eu já sabia. A solitária estava ali. Era minha. Carregaria-a sempre comigo. Tinha que parar de ter repulsa e conviver. Ou melhor, achar a melhor maneira de acalmá-la com alimento.

Devorei Llosa.

Devorei Rubens Paiva.

Devorei Flaubert.

Devorei Clarice.

Devorei Machado.

Devorei Guimarães Rosa.

Devorei Kafka.

Devorei Goethe.

Devorei Camus.

Devorei Garcia Márquez.

Estou devorando Balzac.

E continuo com um apetite desgraçado. Incrédula por nunca ter provado Cervantes, Borges, Cortázar, Dostoiévski, Manuel Bandeira, e tantos outros.

Finalmente, agora as letras alimentam minha revolta solitária. 

 

Isabella Moreira Gama

 04/04/2008

 

 

 

 

 

 

Ainda a palavra

 

 

Nesta nossa semana da palavra,

com a palavra o poeta Brenno

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                        A palavra do lavrador

                        caiu na terra arada

                        e ele, distraído,

                        passou de novo o arado

                        e a palavra ficou enterrada…

                        ou semeada

                        ou incrustada

                        ou adormecida.

 

                        Se um dia ela germinar

                        pode crescer

                        virar discurso

                        pode virar oração

                        ou ladainha

                        ou até reclamação.

 

                        Pode ramificar galhos de protesto

                        ou soltar raízes

                        de meditação

                        ou mortificação.

 

                        A palavra pode crescer

                        pode morrer

                        apodrecer

                        ou ficar p’ra semente

                        se ela não for

                        imediatamente

 

                        dita.

 

 

 

 

                        As palavras inúteis

                        iam sendo escritas

                        na muralha de pedra:

                        um muro alto, espesso, extenso…

                        como a Muralha da China,

                        como o de Berlim.

                        As palavras de pedra

                        se incrustavam

                        entre outras pedras e concreto.

                        As palavras de plástico

                        se sobrepunham às palavras de vidro,

                        às palavras de nuvem,

                        às palavras de vento,

                        às palavras de estrela…

                        Milhões de palavras

                        se aglomeravam

                        no intransponível muro.

                        Palavras de fogo,

                        palavras de gelo,

                        palavras de terra…

                        milhões de palavras

                        pintavam o muro.

                        O muro impassível,

                        o muro passivo,

                        o muro infiltrado

                        por tantas palavras

                        ganhou rachaduras,

                        abalos sensíveis

                        em sua estrutura.

                        O muro rachado,

                        o muro alquebrado…

                        Palavras pesadas,

                        palavras demais…

                           

                        O muro ruiu.

 

 

 

 

 

Ao pé da letra

 

 

 Selma Barcellos

 

 

 

 

 

 

Verissimo – para quem a palavra mais bonita da língua portuguesa é “sobrancelha” – escreveu que certas palavras, ao serem pronunciadas, nos dão a impressão de que voam. “Sílfide”, por exemplo. É dizer e ver evoluções de borboleta no ar. Uma amiga, porém, discorda do mestre. Acha que “sílfide” está mais para peça de encanamento: “O sanitário está entupido. Vai ter que trocar a sílfide.”

É dela também a convicção de que “córtex” é instrumento cirúrgico, “marimbondo” é instrumento de percussão e “proxeneta” é aquela pecinha do carro que quebra à toa. Hilária, a minha Su.

Realmente, há tantas palavras que nada têm a ver com o que significam… “Escorreito”, “crepúsculo”, “escrutínio”, “púbere”, “esculápio”, “cútis”, “ósculo”, apesar de bem intencionadas, são um soco no queixo. Disparado, as mais feias da nossa língua. Já na categoria tudo a ver, pontificam “furúnculo” e “seborreia”.

E as mais belas, expressivas, sonoras, evocativas, na opinião desta blogueira?

 

Superfície

Alecrim

Cicatriz

Dália

Inquietude

Andarilho

Diáspora

Alumbramento


 Alguma sugestão? Vão daí.

 

 

A herança

 

 

 

 

Faltavam pelos menos umas duas horas para raiar o dia quando ele se levantou com todo o cuidado para não despertar a mulher, que dormia tranquila ao lado.

Teve a cautela de não acender nenhuma luz. Conhecia bem a casa e por ela se movimentava como um gato, ou um gatuno.

Sorrateiro, saiu para o quintal e desceu aos cômodos transformados numa espécie de porão das velhas casas, desde quando os abrigos antinucleares que todos eram obrigados a manter tornaram-se desnecessários.

Não mais havia risco de guerras, tampouco existiam países, estados, raças, moedas, línguas, fronteiras. O Conselho de Sábios governava a todos e a tudo agora, desde a grande unificação.

Tinha consciência de que era terminantemente proibido o que fazia. Não mais se falava em crime, mas em “inadaptação comunal”, “conduta desconforme” e outros eufemismos, contudo as punições eram rigorosas. Podia ficar longo tempo banido, longe da família, submetendo-se ao processo de recondicionamento.

Num canto dos aposentos havia um antigo cofre que pertencera ao seu avô e que ele dizia guardar como recordação. Um trambolho, segundo a mulher. Ninguém se interessava por aquela geringonça obsoleta, nem mesmo se sabia direito como funcionava.

Mas ele sabia. Girou o pequeno disco para a esquerda e para a direita, detendo-se rapidamente em algumas das ranhuras numeradas, e por fim puxou a tranca. A pesada porta se abriu com um estalido.

No fundo de uma das divisões, camuflado entre diversos objetos inocentes e sem serventia, estava aquilo que buscava.

Sentou-se no chão, abriu a caixa que o acondicionava, retirou o veludo que o recobria e o aproximou dos olhos. Tinha uma pequena lanterna, mas nem era preciso vê-lo na claridade. Sabia perfeitamente como era. A capa azul com o título em letras douradas. A lombada. As páginas que repassava uma a uma. Lembrava-se do que se achava escrito em todas elas, menos na última, que jamais leu exatamente para não chegar ao fim, para não terminar nunca.

No dia anterior, seu filho mais novo, que era muito diferente dos outros (atualmente cada indivíduo, homem ou mulher, só podia procriar uma única vez), curioso, perspicaz, investigativo, sempre o acompanhava para todo o lado e tinha muita afinidade com ele, havia lhe perguntado de chofre:

― Pai, o que é um livro?

Ele se arrepiou, pegou o menino e o levou para um canto.

― Quem te falou sobre isso? Não pergunte nunca mais a respeito disso. A ninguém, entendeu? Isso é uma coisa que existiu há muito tempo, não serve pra nada, é uma droga que viciava as pessoas, deixava elas enlouquecidas, inquietas, vendo e imaginando coisas. Por isso foi proibida pelo Conselho de Sábios.

Assustado, o menino prometeu que nunca mais voltaria ao assunto. 

A palavra “livro” fora apagada do vocabulário e todos os livros tinham sido confiscados e destruídos. Tudo o que era preciso saber estava no ciberespaço, e podia ser acessado por todos a qualquer momento e de qualquer lugar.

Continuou a folhear, apalpar, cheirar o livro, apertá-lo contra o peito durante algum tempo, embora soubesse que aquilo era contra as leis e a humanidade. 

Ele era um homem de bem, e não podia continuar mantendo aquela coisa, mas não conseguia se livrar dela, das lembranças dos outros tantos livros que havia lido desde criança, da biblioteca do seu pai.

Mais dia, menos dia, porém, teria de acabar com isso. Cronologicamente já estava muito velho, embora ainda fosse vigoroso e ativo conforme os padrões vigentes, graças a medicamentos antioxidantes, reposição hormonal, alimentação controlada e outras maravilhas desenvolvidas. Tinha a mesma disposição e aparência dos seus trinta anos.

Quando percebeu pela claraboia que a escuridão da noite começava a se dissipar, apressou-se a recolocar o livro no cofre, que em seguida trancou. 

Enquanto subia as escadas para retornar ao interior da casa, um pensamento e uma esperança assomaram, acelerando-lhe o coração.

Quem sabe o menino…

 

 

Sorry, dente

 

 

                                                           SORRY, DENTE

 

 

                                                           sorridente

                                                           perdeu o siso

                                                           contente só

 

                            

 

 

 

Se o sinhô não tá lembrado

 

 

 

 

Faz trinta anos que Adoniran partiu no trem das onze.

Como ele vive em mim, continua presente, e sigo com ele pelas ruas do Bixiga até um samba no Brás.

Nóis não se importa…

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=jYfB9v-mjaY&feature=related[/youtube]

 

 

 

“A toga gostou dos meus ombros”

 

 

 

 

 

 

 

     Gilberto Kujawski *

 

 

Caro ministro Ayres Britto, nesta hora da despedida até sempre estamos lendo seu rosto. Sua fisionomia é dominada por uma ponta de malícia. Não a malícia vulgar dos espertos, mas a malicia superior da experiência da vida com sua carga de contradições, a malícia Zen dos sábios.

Os traços da sua fisionomia completam a mensagem de sua palavras, sempre densas, despedidas num relâmpago de presença de espírito e deslumbramento lírico.

Que nos ensina a comunicação silenciosa desta sua máscara tão sergipana e tão brasileira? Em primeiro e último lugar nos ensina que não basta enxergar a árvore isolada, sem vislumbrar a floresta na qual ela se ergue. Porque nada é estanque no mundo, e por se comunicarem entre si é que as coisas se constituem num mundo ou universo.

Em segundo lugar, ensina-nos que nossa missão, a de cada um de nós, é ligar coisa com coisa e todas elas conosco. O que só é possível com o amor. Recorda um grande filósofo que, segundo Platão, o amor é um divino arquiteto que baixa ao mundo para que tudo no universo viva em conexão. Enquanto o rancor separa, nega, agride, o amor soma, completa, afaga.

Como homem, como juiz e presidente do Supremo, V.Excia não tem feito outra coisa, senão somar sem confundir, completar sem adulterar, e afagar sem adular. Viver “em estado de amor” constitui o imperativo de toda sua vida. Mas que ninguém se iluda com sua doçura de palavras e de maneiras. Pois seu segundo mandamento é este: Fortiter in re, suaviter in modo (enérgico na coisa, brando no estilo). Ou em tradução mais livre: pulso de ferro em luva de pelica. Esta é outra lição que transpira de seu semblante.

Como se sabe, o direito não é nem pode ser uma ciência exata, como a matemática ou a física. Porque a matéria-prima do direito são as coisas humanas, e as coisas humanas são essencialmente variáveis e incertas, e não cabem em nenhuma fórmula numérica. Mas o fato de não ser ciência exata não impede que o direito seja ciência intransigentemente rigorosa. Na medida em que não exclui nenhuma circunstância objetiva ou subjetiva, intrínseca ou extrínseca do fato em causa. A decisão do magistrado será sumamente rigorosa na medida em que inclui, em que dá conta da mínima circunstância atinente aos fatos julgados.

Por isso mesmo, deve ser visto com reserva aquele princípio citado com tanta insistência por certo ministro, o digno ministro revisor: “o que não está nos autos não está no mundo.” Eis aí um critério a ser aplicado “cum grano salis”, expressão introduzida por Plínio, o Velho, que significa “com certa ressalva”.

Com efeito, os autos se constituem de textos. Os textos, por sua vez, são feitos de linhas e entrelinhas. Nas entrelinhas inserem-se outras fontes do direito somadas à lei, (que é a fonte formal), tais como os usos, a jurisprudência, e a doutrina. Nada disso consta dos autos formalmente, mas são fatores a serem levados em conta nos fundamentos da decisão. Coisas que não estão nos autos, embora estejam no mundo.

O ar sutilmente malicioso e os olhos atentos em profundidade do ministro Ayres Britto lembram como a rima certa que faltava ao verso, a sentença do nosso grande educador Paulo Freire, “a leitura do mundo precede a da palavra”. Não, não basta a destreza técnica para fazer o grande artista, humanista, pensador, político ou jurista. Sem a leitura do mundo, que se aprende vivendo e não na escola, nada se faz de grande.

Carlos Ayres Britto fez-se o grande jurista e humanista que é, porque antes de aprender a ler os autos aprendeu a ler o mundo com amor e em sua máxima plenitude.

 

 

*  Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista