“E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões.”
“Língua”, Caetano Veloso
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=1CH3GlT78bU[/youtube]
“E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões.”
“Língua”, Caetano Veloso
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=1CH3GlT78bU[/youtube]
Annibal Augusto Gama
Os urubus, no chão, com um arranque, batiam as asas ― flap! flap! flap! ― subiam, subiam, e ficavam fazendo curvas lá no alto, no céu azul. Quando chovia, e depois que as águas deixavam de cair, vinham pousar na cumeeira do telhado, e ali permaneciam, hieráticos, de asas abertas, para as secar. Se caminhavam no chão do quintal, pareciam desajeitados. Não eram muito estimados, aves pretas que viviam de carniça. Mas tudo tem a sua utilidade neste mundo, até os carrapatos.
Havia, porém, as aves e os pássaros gentis, o beija-flor, as andorinhas, os sanhaços, os canarinhos da terra, a rolinha fogo-apagou, o tico-tico, o joão-de-barro, as pombinhas, a viuvinha, os bem-te-vis, os periquitos, os pássaros-pretos, a tesourinha, tantos, tantos, inumeráveis. Ao longe, no dia abrasador, a araponga malhava no ferro. Nos descampados, as seriemas, nos ervaçais as codornas. A coruja, coitada da coruja!, não era benvista, embora sábia, porque se lhe atribuía o mau agouro, Rasgava mortalha, ao redor das casas onde havia um moribundo. Na fazenda, acharam uma grande coruja, ferida na asa. Trouxeram-na para casa, e deixaram-na empoleirada num quarto de despejo, onde ele passou a tratá-la, trazendo-lhe regularmente pedaços de carne e água. Agarrada no pau da cabeceira de uma cama, ela estagiou ali, alguns dias, e já reconhecia o rapazinho. Tic-tic-tic, fazia-lhe com o bico curvo. Até que se curou, e ele a levou para o parapeito da janela aberta. Ia anoitecer, e a corujona sondou, sondou os arredores . Em seguida alçou vôo. Mas ainda voltou para se despedir dele e, uma vez ou outra, ali aparecia, para o saudar.
Era na época em que, em todas as antologias, havia o soneto de Raimundo Correa:
Vai-se e primeira pomba despertada…
Vai-se outra mais… mais outra… enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada…
[…]
Também dos corações onde abotoavam,
Os sonhos, um por um, céleres, voam,
Como voam as pombas dos pombais;
No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem… Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais…
O Irmão Reitor, marista, do ginásio, professor de português, insistia, em cada nova classe de alunos, em declamar o soneto de Raimundo Correa. Ficava de pé, atrás da sua mesa, rubicundo, e agitava as mãos e os braços enfiados na batina negra. As pombas voavam, Ele, porém, parecia antes um urubu.
Em muitas casas, nos seus poleiros, havia papagaios. Desbocados alguns, berrando palavrões. Outros rezavam o padre-nosso. Bebiam café.
Purrupaco, tataco,
A mulher do macaco,
Ela pinta, ela borda,
Ela toma tabaco,
Torrado num caco…
Você, hoje, parece que viu passarinho verde…
E há aquela estória de Millôr Fernandes, do cuco do relógio que, na hora de bater as horas, saia da sua casinhola e perguntava: “Ei, velhinho, que horas são?”
Todas as gaiolas estão com a portinhola aberta.
Os passarinhos fugiram.
“Passaredo” (Francis Hime / Chico Buarque), MPB4
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=8ZbfbyLoCCE[/youtube]
“Na minha vida tem sido como se uma mulher me depositasse nos braços de outra. Isso talvez porque esse amor paixão pela sua própria intensidade não tem condições de sobreviver. Isso acho que está expresso com felicidade no dístico do meu soneto Fidelidade: que não seja imortal posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure.” (Vinicius de Moraes)
Vinicius e Gilda, sua última mulher, a quem apresentava como “minha viúva”
Eu que sou um bendito fruto entre mulheres ― Maria Delucena, Carolina, Isabella, Júlia, Manuela, pela ordem de chegada ― reconheço que nessa matéria não daria nem para a saída diante do nosso poetinha maior, que em 2013 faria cem anos, e outros cem viveria para servi-las, se não fora para tantos amores tão curta a vida.
Pois não bastassem seus tantos e antológicos poemas sobre as mulheres, Vinicius chegou a escrever poeminhas sobre a mulher de cada signo do zodíaco, com a verve e a maestria de sempre.
Não sei se os escreveu por encomenda, necessidade (“e tem um dinheirinho nisso?”, como lhe perguntou um Tom Jobim pobrinho e cheio de contas a pagar, ao ser convidado para musicar a peça “Orfeu da Conceição”; Manuel Bandeira, que daria seu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá, recebeu depois prendas do fabricante agradecido) ou mera brincadeira, mas os poemas chegaram a ser publicados num livrinho.
Maria Delucena é capricorniana (há controvérsias); Carol, aquariana; Bell, sagitariana; Júlia, geminiana; e Manu, pisciana.
E vocês, minhas queridas e binárias estrelas que orbitam pelo meu céu, de que signo são?
O poema respectivo do poetinha lhes cai bem (ou vocês não são nada disso)?
A todas, todo o meu bem, e parabéns pelo seu dia, todos os dias.
Áries
Branca, preta ou amarela
A ariana zela.
Tem caráter dominador
Mas pode ser convencida
E aí, então, fica uma flor:
Cordata… e nada convencida.
Porque o seu dominador
É o amor.
Eu cá por mim não tenho nenhum
Preconceito racial:
Mas sou ariano!
Touro
O que é que brilha sem
Ser ouro? – A mulher de Touro!
É a companheira perfeita
Quando levanta ou quando deita.
Mas é mulher exclusivista
Se não tem tudo, faz a pista.
Depois, que dona-de-casa…
E a noite ainda manda brasa.
Sua virtude: a paciência
Seu dia bom: a sexta-feira
Sua cor propícia: o verde
As flores dos seus pendores:
Rosa, flor de macieira.
Gêmeos
A mulher de Gêmeos
Não sabe o que quer
Mas tirante isso
É boa mulher.
A mulher de Gêmeos
Não sabe o que diz
Mas tirante isso
Faz o homem feliz.
A mulher de Gêmeos
Não sabe o que faz
Mas por isso mesmo
É boa demais…
Câncer
Você nunca avance
Em mulher de Câncer.
Seu planeta é a Lua
E a Lua, é sabido
Só vive na sua.
É muito apegada
E quando pegada
Pega da pesada.
É mulher que ama
Com muito saber
No tocante a cama
Não sei lhe dizer…
Leão
A mulher de Leão
Brilha na escuridão.
A mulher de Leão, mesmo sem fome
Pega, mate e come.
A mulher de Leão não tem perdão.
As mulheres de Leão
Leoas são.
Poeta, operário, capitão
Cuidado com a mulher de Leão!
São ciumentas e antagônicas
Solares e dominicais
ígneas, áureas e sadônicas
E muito, muito liberais.
Virgem
Se Florence Nightingale era Virgem
Não sei… mas o mal é de origem.
A mulher de Virgem aceita a amante
Isto é: desde que não a suplante.
Sexo de consumo, pães-de-minuto
Nada disso lhe há de faltar
O condomínio é absoluto
A virgem é mulher do lar.
Opala, safira, turquesa
São suas pedras astrais
Na cuca, muita esperteza
Na existência, muita paz.
Libra
A mulher de Libra
Não tem muita fibra
Mas vibra.
Quer ver uma libriana contente?
Dê-lhe um presente.
Quando o marido a trai
A mulher de Libra
balança mas não cai.
Se você a paparica
Ela fica.
Com librium ou sem librium
Salve, venusina
Que guarda o equilíbrio
Na corda mais fina.
Escorpião
Mulher de Escorpião
Comigo não!
É a Abelha Mestra
É a Viúva Negra
Só vai de vedete
Nunca de extra.
Cria o chamado conflito
de personalidades.
É mãe tirana
Mulher tirana
Irmã tirana
Filha tirana
Neta tirana.
tirana tirana.
Agora, de cama diz –
que é boa paca.
Sagitário
As mulheres sagitarianas
São abnegadas e bacanas.
Mas não lhe venham com grossuras
Nem injustiças ou censuras
Porque ela custa mas se esquenta
E pode ser muito violenta.
Aí, o homem que se cuide…
– Também, quem gosta de censura!
Capricórnio
A capricorniana é capricornial
Como a cabra de João Cabral.
Eu amo a mulher de Capricórnio
Porque ela nunca lhe põe os próprios.
A caprina é tão ciumenta
Que até os ciúmes ela inventa.
Mulher fiel está aí: é cabra
Só que com muito abracadabra.
Suas flores: a papoula e o cânhamo
De onde vêm o ópio e a maconha
Ela é uma curtição medonha
Por isso nos capricorniamos.
Aquário
Se o que se quer é a boa esposa
A aquariana pousa.
Se o que se quer é uma outra coisa
A aquariana ousa.
Se o que se quer é muito amor
A aquariana
É mulher macho sim senhor.
Porém não são possessivas
Nem procuram dominar
Ou são meigas e passivas
Ou botam para quebrar.
Peixes
Mulher de Peixe… peixe é
Em águas paradas não dá pé
Porque desliza como a enguia
Sempre que entra numa fria.
Na superfície é sinhazinha
E festiva como a sardinha
Mas quando fisga um namorado
Ele está frito, escabechado.
É uma mulher tão envolvente
Que na questão do Paraíso
Há quem suspeite seriamente
Que ela era a mulher e a serpente.
Seu Id: aparentar juízo
Seu Ego: a omissão, o orgulho
Sua pedra astral: a ametista
Seu bem: nunca ser bagulho
Sua cor: o amarelo brilhante
Seu fim: dar sempre na vista
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo o sentimento
E bota no corpo uma outra vez.
Será que tem volta, Selminha?
“Todo o sentimento” (Chico Buarque / Cristóvão Bastos)
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=anFxDsg20KE[/youtube]
Selma Barcellos
Manhã de check-up:
Saio quase duas horas antes por causa do trânsito infernal. Chego pontualmente e ainda mofo para ser atendida em exames marcados.
Aguardo minha vez com aquelas risadas tor-tu-ran-tes de Ana Maria Braga na TV da sala de espera. Não consigo ler meu livro. Não posso fugir. Corto os pulsos? Ao menos eu entraria logo.
Uma jovem folheia “Caras”, sacode o carrinho do bebê com os pés e imita um chocalho ininterrupto com a voz. A criança grita fininho. Sabe motor de dentista?
Toca um celular. O ring é um cidadão aos berros: “Ora comigo! Sai deste corpo que não te pertence! Sangue de Cristo tem poder!” Que isso.
Na volta, já perto de casa, mais engarrafamento. São 40 cones para 10 homens asfaltarem UM buraco, em horário de pico, num trecho afunilado da estrada.
À tardinha… o impensável: “Senhora, queira desculpar, mas vamos estar repetindo um dos seus exames porque faltou luz* e nós o perdemos. Não se preocupe, vamos estar disponibilizando o horário que lhe for mais conveniente”. _ De madrugada!, respondo. Mentira, rosno.
Querido diário, eu não acho, tenho certeza. Nunca mais domínio sobre a qualidade do nosso tempo, pessoas silenciosas, inteiras (suas metades estão sobre a mesa, no bolso, nas mãos), respeito mínimo, privacidade… Nunca mais restaurantes calmos, praias quase vazias…
Admirável mundo novo.
*Que faltou luz. Simplesmente o profissional que me atendeu não dominava aquela estrovenga de medir esqueleto e o exame ficou ilegível. Rrrrr…
Adalberto de Oliveira Souza
FUNIL INVERSO
A unidade
guindado num poço
o funil
a idade.
Posição falsa,
falácia, falcatrua.
Pretensão unívoca
e uma retidão contrária
à área de pouso.
Neste funil
não passa caldo
só saldo de um jogo.
Solto da gravidade
retém
disperso por ócio
ou negócio da China
um caleidoscópio.
A ubiquidade
fora do poço
a única idade.
― Manu, quem é que faz aniversário hoje?
― A Manu, Babu!
― Quantos anos a Manu faz?
(Puxa vida, Babu é tão bobinho! Preciso explicar tudo…)
― Três anos, Babu. Tinha dois, agora, três.
(Vamos ver se ele sabe pelo menos isso:)
― E você, Babu, quantos anos tem?
(Quando vou lhe responder ― errado ―, a verdade me cai na cabeça, como o estalo de Vieira)
― Babu também tem três anos, Manu.
(Ela não questiona a resposta, como sempre faz quando digo algo que lhe parece duvidoso.)
Manu e Babu recém-nascidos
Manu aos três
RIO 448 ANOS
“Vou te contar
minha alma canta
vejo o Rio de Janeiro
estou morrendo de saudades
Rio, seu mar
praia sem fim
Rio, você foi feito pra mim.
Da primeira vez era a cidade
da segunda o cais e a eternidade
o resto é mar
é tudo que não sei contar
da onda que se ergueu no mar
e das estrelas que esquecemos de contar.
No mar estava escrita uma cidade,
o mar batia em meu peito, já não cabia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.”
(Texto construído com excertos das letras de “Samba do avião” e “Wave” de Tom Jobim, e dos poemas “Mas viveremos” e “Coração numeroso”, de Carlos Drummond de Andrade)
“Wave” (Tom Jobim)
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=wGAfXN1-uVw[/youtube]