Miopia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

  

“Ele queria ver mais as coisas, todas, que o olhar não dava”.

Guimarães Rosa –  Manuelzão e Miguilim

 

 

“D-E-G-H”

“Parabéns!” – Disse o oculista à garota.

Ela não comemorou. Sua irmã um pouco mais velha acabara de ganhar óculos. Seu pai usava óculos. Sua mãe não usava por teimosia, mas era míope. Depois da consulta, ela passou a ser a única que enxergava diferente.

Inconformada, pediu aos pais um par de óculos. Eles sempre respondiam caçoando da garota:

“Para você, só óculos escuros!”

Ela não se conformava e todo ano, quando a irmã voltava ao médico, aproveitava a consulta e pedia para que sua visão fosse medida novamente. Enquanto o grau de sua irmã aumentava, a visão dela continuava perfeita. Acertava sempre todas as letras. Algumas vezes pensou em errar de propósito, mas nunca teve coragem pois tinha medo de acharem que ela não havia sido alfabetizada corretamente e a obrigarem a frequentar aulas particulares.

Além dos óculos, ela queria colocar gesso e aparelho.

O gesso conseguiu. Rompeu o ligamento do tornozelo sete vezes. Não de propósito, já que depois da primeira torção viu que aquilo doía pra diabo. Como uma praga, a cada passo em falso, seu tornozelo voltava a parecer uma bola de tênis. Piorou quando passou a usar salto alto. Sentiu-se uma idiota por não conseguir andar tão bem quanto as amigas. Mas a falta de elegância tinha a explicação que tanto a orgulhava.

O aparelho nos dentes ela também nunca conseguiu. Algumas vezes colocava um clipe de papel esticado na boca e contava para todos na escola que havia colocado aparelho. Na época, os meninos ficavam encantados. Diziam que meninas de aparelho beijavam diferente. Seu primeiro namorado usou aparelho, e quando ela o viu comendo coxinha desistiu de consertar seus dentes quase perfeitos.

Um dia, a garota que agora já era mulher, pegou uma forte conjuntivite. Sua vista ficou embaçada por mais de um mês. No começo, ela achou graça e não foi ao médico. Depois, entrou em desespero. Tudo o que ela costumava ver com nitidez estava embaçado e sem definição.

Decidiu voltar no oculista que cuidava de seus olhos perfeitos há mais de vinte anos. Mal conseguia ver o semblante envelhecido do médico. Ele quase não a reconheceu.

Fim do tratamento. Voltou ao retorno da consulta, pois sua vista continuava embaçada. Ainda desesperada, perguntou ao oculista:

“Não vou sarar nunca?”

Neste momento, ele lhe deu o presente que ela sempre esperou:

“0,75 de miopia”

Ela sorriu e mesmo com as pupilas dilatadas foi à ótica mais próxima, comprou os óculos do seu sonho.

Agora ela enxergava como todos os membros da família.

 

Bell Gama – agosto 2008

 

8 comentários

  1. Brenno
    08/11/12 at 12:38

    Tá vendo, Bell? Você “não nasceu de óculos”.
    Eles são frutos da sua conquista. Entre outros.
    Beijo.

  2. Sophie
    08/11/12 at 14:51

     
    Usar óculos é charmoso. Eu gosto. E gosto muito dos seus textos, Bell, un beso!
     

  3. Antonio Bandeira Correa
    08/11/12 at 16:45

    Tanto por tão pouco,rs. Era só ficar mais velha… e a mioipia viria, inconteste.

    • Antonio Carlos A. Gama
      08/11/12 at 17:08

      Caro ABC, que enorme prazer vê-lo por aqui.
       
      Como no Bloghetto, aqui também a casa é sua.
       
      Abração.

  4. Antonio Bandeira Correa
    09/11/12 at 11:29

    Obrigado, caro Tom Gama. Estaremos juntos. Sempre!
     
    PS: Meu apelido familiar tb. é Tom (mas aqui no Méier, todos me conhecem como Bandeira).

    • Antonio Carlos A. Gama
      09/11/12 at 14:44

      Pois então, meu querido Tom Bandeira, temos mais coisa em comum ainda.

      E você é do Méier de Millôr Fernandes…

  5. 09/11/12 at 12:54

    Amei! Amei! Amei! Assim mesmo, três vezes.
    Bell, que tal uma foto com os ‘oclinhos’? Os modelos atuais nos deixam tão charmosas…
    Na adolescência, eu tinha uma amiga de olhos pequenos e de um azul de Capri. Eu achava lindo e ficava diante do espelho apertando os meus. A mise en scène ia até o primeiro tropeção, claro.
    Beijocas!
     

  6. 13/11/12 at 10:21

    Selminha, obrigada! Vou colocar uma foto de óculos só para você. Agora, com o passar dos anos, ele não sai do meu rosto beijo!

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