A herança

 

 

 

 

Faltavam pelos menos umas duas horas para raiar o dia quando ele se levantou com todo o cuidado para não despertar a mulher, que dormia tranquila ao lado.

Teve a cautela de não acender nenhuma luz. Conhecia bem a casa e por ela se movimentava como um gato, ou um gatuno.

Sorrateiro, saiu para o quintal e desceu aos cômodos transformados numa espécie de porão das velhas casas, desde quando os abrigos antinucleares que todos eram obrigados a manter tornaram-se desnecessários.

Não mais havia risco de guerras, tampouco existiam países, estados, raças, moedas, línguas, fronteiras. O Conselho de Sábios governava a todos e a tudo agora, desde a grande unificação.

Tinha consciência de que era terminantemente proibido o que fazia. Não mais se falava em crime, mas em “inadaptação comunal”, “conduta desconforme” e outros eufemismos, contudo as punições eram rigorosas. Podia ficar longo tempo banido, longe da família, submetendo-se ao processo de recondicionamento.

Num canto dos aposentos havia um antigo cofre que pertencera ao seu avô e que ele dizia guardar como recordação. Um trambolho, segundo a mulher. Ninguém se interessava por aquela geringonça obsoleta, nem mesmo se sabia direito como funcionava.

Mas ele sabia. Girou o pequeno disco para a esquerda e para a direita, detendo-se rapidamente em algumas das ranhuras numeradas, e por fim puxou a tranca. A pesada porta se abriu com um estalido.

No fundo de uma das divisões, camuflado entre diversos objetos inocentes e sem serventia, estava aquilo que buscava.

Sentou-se no chão, abriu a caixa que o acondicionava, retirou o veludo que o recobria e o aproximou dos olhos. Tinha uma pequena lanterna, mas nem era preciso vê-lo na claridade. Sabia perfeitamente como era. A capa azul com o título em letras douradas. A lombada. As páginas que repassava uma a uma. Lembrava-se do que se achava escrito em todas elas, menos na última, que jamais leu exatamente para não chegar ao fim, para não terminar nunca.

No dia anterior, seu filho mais novo, que era muito diferente dos outros (atualmente cada indivíduo, homem ou mulher, só podia procriar uma única vez), curioso, perspicaz, investigativo, sempre o acompanhava para todo o lado e tinha muita afinidade com ele, havia lhe perguntado de chofre:

― Pai, o que é um livro?

Ele se arrepiou, pegou o menino e o levou para um canto.

― Quem te falou sobre isso? Não pergunte nunca mais a respeito disso. A ninguém, entendeu? Isso é uma coisa que existiu há muito tempo, não serve pra nada, é uma droga que viciava as pessoas, deixava elas enlouquecidas, inquietas, vendo e imaginando coisas. Por isso foi proibida pelo Conselho de Sábios.

Assustado, o menino prometeu que nunca mais voltaria ao assunto. 

A palavra “livro” fora apagada do vocabulário e todos os livros tinham sido confiscados e destruídos. Tudo o que era preciso saber estava no ciberespaço, e podia ser acessado por todos a qualquer momento e de qualquer lugar.

Continuou a folhear, apalpar, cheirar o livro, apertá-lo contra o peito durante algum tempo, embora soubesse que aquilo era contra as leis e a humanidade. 

Ele era um homem de bem, e não podia continuar mantendo aquela coisa, mas não conseguia se livrar dela, das lembranças dos outros tantos livros que havia lido desde criança, da biblioteca do seu pai.

Mais dia, menos dia, porém, teria de acabar com isso. Cronologicamente já estava muito velho, embora ainda fosse vigoroso e ativo conforme os padrões vigentes, graças a medicamentos antioxidantes, reposição hormonal, alimentação controlada e outras maravilhas desenvolvidas. Tinha a mesma disposição e aparência dos seus trinta anos.

Quando percebeu pela claraboia que a escuridão da noite começava a se dissipar, apressou-se a recolocar o livro no cofre, que em seguida trancou. 

Enquanto subia as escadas para retornar ao interior da casa, um pensamento e uma esperança assomaram, acelerando-lhe o coração.

Quem sabe o menino…

 

 

7 comentários

  1. André
    26/11/12 at 12:09

    Gama, vc havia postado anteriormente esse texto no (excelente) blog da Selma, e gosto muito, como tudo que vc faz: sem dúvida que os livros são importantes na formação de nossa sensibilidade, pois com eles ganhamos cultura, ampliamos nosso vocabulário, aumentamos o senso crítico, melhoramos nossa visão de mundo e viajamos dentro dele. Dos que eu li recentemente, como anotei certa vez, o que mais gostei foi Verdade Tropical, do mestre Caetano: se eu pudesse, leria mais um milhão de vezes de tão bom que é. Eu viajo nesse livro.
    Abração.

    • Antonio Carlos A. Gama
      26/11/12 at 13:06

      Se não me engano indiquei “Verdade Tropical” a você ou comentamos a respeito, não foi, André?

      • André
        26/11/12 at 20:49

        É verdade Gama, em um post de abril vc se referiu a esse livro e eu fiquei curioso, vc tbém me indicou.
        Sempre tive curiosidade de saber a que se referia, antes de ler eu pensava que se tratava de uma biografia do Caetano, mas prioriza suas lembranças do tempo do tropicalismo, sem se limitar a isso. Comprei o livro e pretendo reler em breve.
        Abraço.

        • Antonio Carlos A. Gama
          26/11/12 at 20:53

          André corre lá no Bloghetto que Selma postou uma música em sua homenagem.

          Não avisei antes porque não tenho seu e- mail e você comenta aqui com um endereço fictício.

  2. André
    26/11/12 at 21:14

    Gama, eu vi… nem sei como agradecê-la e retribuir essa gentileza que me fez. Ela é demais.
    Abraço.

  3. 27/11/12 at 8:39

    Que belo conto, meu amigo. Tão bem tecidas as palavras…

    Beijocas! 

  4. sonia kahawach
    28/11/12 at 8:02

    Lindo, lindo, lindo! Adorei e reli umas três vezes, imaginando cada lance e tudo o que acontecia por trás da atitude do homem em busca do livro. V. sabe que minha imaginação voa longe, né?
    “Roubei” pro meu blog. Beijão 

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